2 de junho de 2011


Mulheres.
Esses seres que diferenciam-se na genética com duplas iguais, são ainda mais repletos de entrecantos que seus pares xy. Tão evoluídas no quesito adaptação, que por muitas vezes nascem presas em outros corpos, outras mentes e mesmo assim descobrem uma maneira de anemofilar sinapses de germinação para se tornarem completas.
Musas gregorianas de, luxuriosas piltzianas nas letras de Zero Quatro e trovadoras nas estrofes de um Tremendão.
Foi uma dessas valquírias (a que move meus ventrículos na direção dos pulsos vivos), que mostrou-me o maior significado da Marcha Nacional que acontecerá dia 18 de junho. Uma manifestação que coloca na linha de frente da batalha, uma guerra travada há séculos.

Quiçá essa a maior de todas já vividas, pois não se enganem meus compatriotas de guerrilha, a luta pela libertação da alma humana já começou.

Foi em frente à um prédio na Rua Barão de Limeira, no centro da cidade de São Paulo. Edifício aliás, morada de um veículo de comunicação importante do país. Mesmo utilizando de metodologia pedante contra sua nemêsis parlapatônica, a Folha de São Paulo é um ponto de referência.
Foi lá que o morador de rua sofreu um atropelamento, que não passaria de mais uma ocorrência cívica com lesão se não fossem alguns detalhes.

Conta o cordel que o senhor em questão atravessava a rua quando não podia (semáforo fechado para pedestres), desavisado etilicamente foi abalroado por uma moto que vinha em trajetória perpendicular. A velocidade aqui não é questão.
O importante é que o motociclista passou por cima do mendigo equivocado com a sinalização.
Erro do pedestre óbvio, mas essa também não é a celeuma filosófica cotidiana. Descobrir o personagem do erro não é minha função, mas os acontecimentos pós atropelamento é que são a chave.

Bêbado equilibrista sem um de seus chinelos, o morador de rua, sem nome e americanamente chamado de Joe Doe, cambaleia na direção da calçada. O motociclista levanta-se e vai em direção da moto. Olha de perto a carenagem, lataria, banco e para choques. Aperta botões e manetes certificando-se de que suas mãos tinham a firmeza de minutos passados. Levanta seu cavalo de força e coloca-se em pé.
Verifica o tanque, passa a mão pela nuca procurando um sangramento que não existe. Senta-se, dá a partida e some por entre o cinza das nuvens de inverno.

Mas onde é que a Marcha da Liberdade se amalgama com um bêbado e o motociclista?
Simples meus leitores fora de eixo, o moto condutor em nenhum momento procurou ver se por algum acaso do destino nosso herói quixotesco se machucara. Do mesmo jeito que Dom sequer voltou ao pavimento para olhar o cavaleiro de metal.

No calor da cidade já não nos enxergamos. Esbarramos em outras pessoas diariamente no metrô, pontos de ônibus e nas calçadas. Não sabemos quem são, não queremos saber quem são. Não temos tempo, paciência ou vontade de perceber o próximo que anda pelos mesmos caminhos. O ser humano desaprendeu a olhar a sua própria espécie. Mamíferos parmalateanos que somos, não vemos o outro igual.

Nossa cegueira anda tão oftalmologicamente explosiva, que atropelar uma pessoa torna-se tão dramático quanto passar por cima de um toco de madeira na rua. Um buraco no asfalto causa mais empatia do que um mendigo. A mais drástica constatação desses tempos binários é essa.

Não reconhecemos mais nosso semelhante.

E não se enganem quando lhes escrevo dizendo que essa é a maior pauta que pode existir. Acompanho seus debates pela rede e vejo que a meta, é descobrir quais as causas que valem ser colocadas na marcha. Pois gostaria de contribuir com essa.

 A ÉTICA DO CANIBALISMO.


 Existe uma certa má vontade com a existência de tribos e indígenas que usavam a técnica. O ritual de alimentar-se da carne humana é deveras mal visto por entre os círculos mais humanistas. Prega-se a barbárie de uma espécie que desossa seus semelhantes e come seus músculos hemáceos, como se fossem a mais maravilhosa iguaria culinária francesa.
Não importa muito se o corpo devorado é assado na fogueira, ensopado ou mutilado por tacapes e degustado como uma foca marinha por esquimós. O canibalismo é um tabu de nossa espécie. Mas o que não se pode negar é que para se alimentar de alguma coisa, antes de mais nada, é preciso desejar o alimento. E os usuários das técnicas culinárias tem essa vontade tão enraizada, que a característica é passada de geração à geração.

Satisfazer seus instintos alimentares com a carne do inimigo ou de um ser da mesma espécie é antes de mais nada notar a existência de um outro corpo. Antigos povos comiam outras pessoas, pois acreditavam que a alma do banquete passaria para o devorador. Consumando assim, uma maneira de fazer com que a natureza fosse uma só. Fusão atômica de elétrons vivos e que sangravam por entre os dentes afiados.

Devemos também lembrar que em alguns relatos de acidentes aéreos, o canibalismo também foi usado como maneira de sobreviver. Uma prova de força humana e doação sem precedentes. A sua vida servindo de alimento para que uma outra possa continuar. Poéticamente mórbido, mas linda imagem. 

Não quero aqui incitar o início de revolução nos moldes zumbianos, muito menos é minha intenção começar uma carnificina.
Mas a característica canibalesca mais apropriada é a da visão. Olhar as pessoas como se elas pudessem nos alimentar.
Refeição de alma, através de outros olhares, outras palavras (um bom dia até), fazendo com que nunca mais exista essa cegueiria em relação ao outro. Notar a sua espécie de maneira mais pormenorizada possível, é forçar a nossa visão a desistir da escuridão do olhar. Ver os detalhes de cada pessoa, perceber entrecantos. Deixar-se alimentar por cada idéia que vem de diferentes endoesqueletos diferentes do seu, é a maior prova de que temos que caminhar juntos. 

Canibalizar não no sentido aterrorizante, mas comer um pedaço de alma e doar um seu em reposta. Trocar essa energia octaedracubana de gente. Pois não é exatamente o contrário disso que os movimentos ditos conservadores fazem??

Os neonazistas não enxergam o gay como outro ser humano. A bancada evangélica também não. Outros não enxergam no nordestino um semelhante. Quem estupra não enxerga na mulher-menina outro mamífero, mas sim um pedaço de madeira ou um plástico sem vida. Se até a folha em branco na mesa de Sartre tem a consciência de que ela existe, por que não o homem entender a idéia?

Todos estão cegos e surdos quando o assunto é olhar outro ser humano. Saramago e Roberto tinham razão. Cabe enfim a nós, paladinos das redes sociais (e não se enganem, todos nós somos), colocar a visão novamente no rosto e na alma de todos.

Retirar o plugue que fará de nós eternas pilhas, passa necessariamente pelo poder de enxergar nosso semelhante. Canibalizar sentimentos, devorar a felicidade de se notar ao outro, é abrir espaço para uma troca de vida inigualável.

Sim nós seremos a Espanha dia 18, mas eu prefiro Zion!!!!!