27 de maio de 2024

, ,

trecho

 

A luz rompeu pequenas partículas de poeira residentes tanto nos vítreos condomínios e jardins japoneses, onde era possível ver as marcas dos arados de areia percorrendo o composto um tanto quanto amarelado e pontuado por pontos marrons da outrora tinta, formando desenhos circulares e linhas traduzindo meridianos de energia que terminavam na linha divisória da moldura da janela de ferro e seu vidro antigo,[...]

15 de maio de 2024

, ,

Helicóptero

O cálculo deveria ser impecável, não existe nem acolá nem entretanto que justifique um recuo. Tudo aquele dia havia levado lhe ao tracejado gráfico deste momento. A sequência era clara: primeiro encostaria as duas escápulas a serem separadas pela linha média da porta, flexionaria em, pelo menos, setenta e cinco graus o joelho para que desse modo o ângulo favorecesse a pressão do corpo sobre a madeira com maior segurança, depois, aumentaria o vetor apoiando a linha anterior do triângulo de sustentação do pé na borda da cerâmica e colocaria um pouco de joulestenia em seus músculos tibiais. Longe dos ouvidos era possível perceber um agudo rotacional percutindo o ar.


Visto que a biomecânica do quadril e pernas estava acertada, era hora de separar os trapezistas sem rede dos malabares com duas bolinhas de tênis. O copo de plástico, que se encontrava cheio, seria colocado na borda da boca e esta sustentaria o recipiente sem derramamento de líquido, enquanto sua mão esquerda alcançaria o frasco fechado ao mesmo tempo em que a direita empregaria menor esforço para recolher de seu bolso o pedaço de pano ainda vivo. O som ao longe tiquetaqueia mais perto, parecendo estar menos de duas corridas velocistas de distância. Impressionante mesmo é perceber que a largura dele elasticamente perseverou maiores tons. Sentiu um pequeno tremor em suas mãos, contudo erros não poderiam ser permitidos dentro do cubículo de trabalho, mesmo com aquele sonido. Movimentos de antecipação completos, restava agora jogar o osso para cima, esperar sua circulação em voltas até o espaço, para o abraçar em forma de nave espacial povoando de tecnologia aquele ato da peça.


Frasco sem tampa, pois cambaleava entre o indicador e médio, embalado no berço construído pelo polegar, permanece dormindo em salivar, o som do lado de fora desenha enfim seu tamanho em ferro, rotores e motores, que claramente evidenciam a presença de um helicóptero. Sobrevoando baixíssimo de hélices asssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssoviando pelos passantes do lado de fora. O pano então prestidigita uma queda e repousa na boca vítrea, o que conclui com sucesso todo o truque. Ouviu então um grito de socorro, uma voz ecoando frase complexa e desconexa sobre a hélice da aeronave ter decapitado uma pessoa, mas não só. Outra oralidade em pânico descreve aos berros a perda de duas pernas, mais uma frase, mais dois braços e um peito dilacerados. Mas já é tarde e o palco não espera e a nova receita deve ser aspirada sem pressa. Então a porta o abraça, carinhando a maçaneta de algodão-doce em suas orelhas, ele sente uma língua de azulejos tocar seus lábios. Esquece o triângulo de sustentação do pé, prefere o longo beijo cerâmico de Itatiaia. Abre os olhos e a vê, poderosa deusa mitológica que conduziu as amazonas de Madagascar, aquela ilha de amor. Não há mais corpo, não há mais ele, apenas um caleidoscópio de madeira onde músculos e serragem correm pelas mesmas veias. Tudo interrompido pelo pânico das ruas que invade a cabine. O cheiro do massacre entra pelo seu nariz e ele já não consegue permanecer ali. Precisa sair, ajudar aquelas pessoas mortas e salvar os feridos. Abre a porta, mas não consegue andar. O sangue civil pelas ventas e orifícios do asfalto são só finalizados quando o helicóptero bate contra um muro que usava bermuda preta e uma camiseta da banda Radiohead.


“Marcos, caraleo, fecha esses braços e para de girar, você está batendo em todo mundo”.

Ao longe um Fusca reverbera Olodum tocando Madagascar.

,

C22H38O5

De todos os rostos jamais vistos, o teu é o que mais recordava. Dos abraços não nascidos, o que seria para ti, mais padece. Contudo, essa nunca deverá ser uma escolha nossa.



,

Shibari

 

Desabou no limite do calçamento.

Talvez por ter pouco espaço entre seu rosto e o meio-fio não conseguiu deslisar o corpo na direção dos trilhos da linha férrea, como costumava fazer nos dias onde percorria o trajeto da escola estadual até sua casa a pé. Ali, por entre os novelos matagais existiam três portais onde a eletricidade do escapar da cidade os atravessava várias vezes ao dia, vestidos por uma dúzia ou mais de vagões marcados com o logo da empresa ferroviária. Aquele dia contudo, não havia espaço. Sentiu as mãos rasparem asfalto abafando a queda, ouviu sangue escapando pelas rachaduras da pele, descendo pelo corredor de água na beirada da calçada. Baforou arremedo imagético das comportas na estação de tratamento d’água, instalada ao lado do campo de futebol de várzea, onde foi goleiro residente na cratera de lama, com seus óculos caindo enquanto o time adversário renegava um sossego. Ocasião onde o mesmo menino lhe deu uma mesma rasteira, exatamente igual hoje. Na lama, ouviu as águas da comporta. No asfalto ouviu seu sangue percorrer a Orlando Moretto. Rua inclinada da mesma forma que o viaduto, onde troncos da construção formavam malabares e plataformas que sobrevoavam a linha férrea, territórios para batalhas de trapezitas espiões filmadas por seus óculos grande oculares, enquanto o maquinista alumiava toda vegetação das encostas. Inclinada, como a cama do quarto onde ela dormia com o marido. A água na beirada da calçada corria-lhe os arranhões, o jato do chuveiro compunha bailados pelas escápulas desenhadas em ângulo reto das costas fechando as cortinas em suas mãos afastando as coxas hipertônicas daquela mulher. Passou a mão esfolada pela boca e sentiu o gosto da terra da rua Orlando Moretto em seus lábios ao tentar levantar-se. Memorizou aquele gosto dela de rebordo doce, o cedro que sorvia sua língua percorrendo a pele casada e por fim o enroscar dos pelos em seus dentes. Ao levantar-se, passou pelo menino que lhe derrubara. Não revidou, pois o congelado tempo permitiu que levitasse suspenso por um shibari, mesmo que no dia do seu espancamento por sete quarteirões o resgatou. Idêntico ao que levou-lhe a porta da casa dela, esperando seu marido e filho viajarem, para que pudessem viver nus durante uma vida inteira de oito horas. Perfeitamente iguais as que balançavam nas madeiras da construção do viaduto, que ao atritarem na estrutura, esfumaçavam-se. A memória do atrito nas paredes úmidas dela deslizando seus dedos esfolados no calçamento da rua Orlando Moretto, lembravam que a vida era pulso daquela língua valsando-o. Era essa memória que tentava sustentar por entre a fumaça da última pedra de crack queimando nas cinzas naquela lata de refrigerante, ecoando os carros na Avenida Nove de Julho, inclinada tal qual a rua Orlando Moretto.

,

Synapses

 Já me pusera apreensiva antes mesmo de bater à porta, tudo isso por conta de uma história que nem ao certo sei ser verdadeira sobre como este específico chefe simplesmente esganou um de seus estagiários após severa crise, onde o resultado externo fora O Corpo cercado por seis policiais que tencionaram a possibilidade dele ter matado alguém dentro do seu apartamento, devido aos gritos ouvidos do lado de fora, que no final das contas eram Do Corpo mesmo. Recontei por seis vezes os azulejos azuis que cobriam a parede da entrada do departamento, fazendo questão de também enumerar todas as flores delicadas que os adornavam. Minhas mãos suadas por demais, quase nem conseguem abrir a maçaneta quando o berro do chefe mandou-me entrar. Enquanto caminhava pela sala completamente escura, uma voz forçosamente massificada, rouca e falha me recebe.


“Bom dia estagiária Synapse Modular Dexa. Bem vinda a Alphaville, megalópole cosmopolita planejada e regida pelo computador central Alpha 60 e suas regências…”. A frase não se completa pois uma risada solitária ecoa pelos cantos enquanto entrei vagarosamente fechando os olhos em suspiro pensando como é que fui parar com um homem que se pensa engraçado. “Meu Deus estagiária, bem vinda, eu não consigo parar de fazer isso com todos vocês, mas vocês dessa geração nova, deve ser pelo sono, não conseguem ter senso de humor”.


“Bom dia senhor…”.

“Senhor ACTH, SENHOR ACTH”.

“Me desculpe, senhor acth”.

“Já sei que você é daquelas me too”.

“Como, senhor?”.

“Nada, vem logo aqui!”.

“Mas a sala toda está escura”.

“Dá o primeiro passo, por favor….senhorite”.


Já tomada de horror trabalhista, ao caminhar em frente uma luz acendeu-se em meu macacão. Iluminando a sala, visto que a luz era bem ampla, pude ver com mais detalhes, o lugar tomado de painéis separados em sequências que obedeciam uma numeração e cada número, em ordem crescente, era desenhado com uma única fonte, e estabeleciam relações matemáticas entre si. Por exemplo, a sequência intitulada “Preparação do café da manhã”, terminava no botão de número 18496 intitulado “Colocando a caneca de café com a mão esquerda na mesa, deixando a alça do lado de fora”, ligando-se ao 136 da sequência “Banho”, onde se lia “Lavando o primeiro metatarso da mão esquerda”. Tudo isso disposto em duas fileiras de painéis que tomavam conta da sala. Havia espaço para circulação pela sala, e só. Chamou-me atenção um botão enorme vermelho cercado por uma caixa de acrílico, com os dizeres escritos em um pedaço de esparadrapo logo abaixo, “Black Sabbath”.


“Bom, como você já percebeu estagiária, estamos ainda em momentos antes da luz adentrar a sala. Isso deve ocorrer assim que a primeira pálpebra abrir, em exatos doze minutos quando esse medidor aqui escritor ”Sonho” zerar a contagem. Quero já deixar claro o seguinte: tudo aqui segue uma ordem específica e essa ordem deve ser seguida de maneira perfeita. Não há espaço para manobra, muito menos para jeitinho. O Corpo depende da nossa eficiência para que aquele botão jamais seja acionado. Por isso, desde já siga estritamente minhas ordens e permaneça atenta aos tempos exatos do acionamento dos botões sequenciais. Deles depende tudo, ainda mais hoje, que temos um novo evento”.


“Novo?”.


“Sim, hoje na aula da pós-graduação, O Corpo terá que apresentar um texto. Como ele não o escreveu ainda e temos pelo menos mais oito horas de eventos que ocorrerão ao longo do dia, e estes pedem uma sequência exata de ações, todo cuidado é pouco. Com calma e sem nenhum tipo de chilique de estagiária, tudo deve correr bem”.


Eu só pensava como ia ser lindo o processo trabalhista, era a única coisa que me fazia continuar ali.


“Pois bem, como é que é… Synapse Dexa, vamos lá. Repassando: Primeiro o café da manhã depois, por favor atenha-se especificamente ao passeio com o cachorro, pois este está velhinho e há uma sequência lógica de passos dados pelo Corpo quando o cão tropeça. Há e não esqueça de apertar esse botão azulado aqui de procedimento novo, o sinal da cruz”.

“Sinal da cruz, senhor acth, mas O Corpo não é ateu?”.

“Esse departamento não discute isso, apenas criamos as sequências lógicas que devem ser seguidas para que não ocorra a morte do indivíduo”. Voltando, depois disso os atendimentos e sempre todos em ordem alfabética, lembre-se sempre entre procedimentos, existe aquela sequência mais gasta, por ser usada com mais frequência, chamada “Lavando as Mãos”. Primordial para que tudo corra bem. No treinamento você recebeu todo o procedimento das refeições e da escovação de dentes. Lembrar que, o fio dental deve começar pelo lado esquerdo superior da boca, e passar sempre em números ímpares pelos vãos dos dentes. Jamais me aperte esse botão em vezes pares, pois o procedimento tem que se reiniciado e já tivemos problemas de gengivites por sangramentos”.

“Sim senhor”.

“O dia deve ocorrer sem maiores problemas, visto que as sequências estão muito bem equacionadas, meu temor é quando ele começar a escrever a tarefa. Veja bem, é método, então O Corpo vai tentar, mesmo com um rascunho feito, fazer algo fora dos padrões, pois temos um problema sério de sabotagem dentro da empresa e já há uns anos temos que lidar com ataques terroristas. Eles surgem do nada em grupos pequenos de sinapses, com uns macacões coloridos, jogando tinta explosiva em todas as salas do departamento. Se chamam V.I.D.A.S.. E mesmo com anos de emprego, eu jamais vi grupo tão coeso assim. O Corpo frequenta um lugar onde sempre conversa com outro Corpo, me parece feminino, onde escuta e fala muito, chora de vez em quando e sempre depois de períodos onde ocorrem essas conversas os ataques terroristas ocorrem. Por isso desse enorme botão vermelho, aliás gostou da referência?”

“Na verdade eu não entend…”.

“Meu SAIS ESSA GERAÇÃO…..PARANOIA, a música do Black Sabbath. Sempre que esses ataques terroristas ocorrem, apertamos esse botão para que as sequências todas voltem mais fortes ainda”.

“Entendi”.

“Pois bem, fique atenta pois tenho a impressão que eles devem chegar hoje com força”.

“Mas tem algum sinal de que o grupo apareça?”.

“Ter não tem, mas está sentindo esse cheiro?”. “Então, sempre que esse cheiro se torna mais forte, eles atacam”.

Eu sabia que cheiro era aquele, eu tinha certeza agora que todo meu treinamento estava certo e que jamais poderia estar no lugar errado, aliás, jamais poderia estar errada. E como seria maravilhoso poder matar dois malditos coelhos com uma cajadada só. Primeiro um chefe maldito, capitalista porco e depois poder fazer valer tudo aquilo que acredito e tenho por mais amor. Retiro o frasco do bolso, o aperto, direciono a luz para certificar-me que peguei o certo pela manhã. Sim, era esse. Abro um leve sorriso quando leio: FRASCO 134 A. V.I.D.A.S. EXTRATO DE ISRS E CLOMIPRAMINA.

x

,

Os Originais

CENA. SÃO PAULO. INT./EXT. DIA/NOITE.


Os olhos abertos, no calendário dia quarenta e oito de fevereiro de dois mil e vinte e quatro. O alarme não mais ressoa, martela. John Cale e seu Drone ressoam. As mãos aos fios de cabelo para depois perfazerem os olhos amontoados em restilo de sono. Um dedo correndo pela lateral da têmpora esquerda, encontra a curva da orelha que coça no mesmo tempo da luz refletindo no tímpano. Os sons do corpo lento, os cintilares do colchão de molas ensacadas e suas manchas na epiderme. Não lembrava se era café ou não, mas os dedos ainda procuravam fósseis dentro de suas entradas capilares. Fecha os olhos novamente e lateralmente vagueia seu corpo até encontrar a borda da cama, enquanto seus joelhos acertam um minúsculo ângulo de escape onde os artelhos consigam sentir completamente o piso gélido do quarto.

“I don’t know, just where I’m going.

But I’m gonna try for the kingdoom if I can”. 


Os passos então entrelaçam a inércia 

enquanto as mentiras enrolam a língua. 

“’Cos it makes feel like I’m a man”. 


Os pés então cortam o chão, descem as escadas.


Trôpegos se colocam                                                                            “When I’m rushing on my run

violentos andares                                                                                    When I feel like Jesus son

enquanto mãos alcançam

a escova, passa pelos                                                                              And I’ll tell you things

dentes, calça os sapatos,                                                                         aren’t quite the same,

desentorta a gola                                                                                    When I’m rushing on my run

da camisa,                                                                                              When I feel like Jesus’s son

ajeita a barra calça,                                                                                Well I guess I just don’t know

corre,                                                                                                      Well I guess I just don’t know”

empurra o tempo,

lança a mochila, desafia

a gravidade das escadarias

enquanto transpõe por dentro

o muro da entrada, porém

escuta de novo aquela voz:


ONDE ESTÃO OS ORIGINAIS!!!!!


Enquanto o autor recorre ao controle de ansiedade para que possa caminhar com mais paciência, percorre mentalmente todas aquelas flores e folhas do calçamento. Os pedregulhos soltos e as formas saturadas das cores enquanto rios correm pelo meio fio. Somem preocupações enquanto recolhe seus pensamentos em Amanda, pois precisa permanentemente percorrer precoces pesadelos sobre ela estar ou não na porta de entrada da loja. Como o sol resvalaria nos tons vermelhos e como a luz se esconderia nas mechas ainda desbravando a coloração inicial. A calçada então se abre, lajotas elevam-se enquanto o autor gorjeia alguns sons como se fosse alvo trinado em tom menor vindo de um bambu rebatendo o vento de outono. Onde estará Amanda. Onde estará aquela torneira que ela tanto amava abrir e recobrir o apartamento de agrupamentos de água que quase não lhe cabiam nas mãos enquanto gritava que o autor precisava viver. 


“I have made the big decision, 

I’m gonna try nullify my life”.


Amanda corria,                                                                           “Cause when the blood begans to flow

escorria pela                                                                                  When it shoots up the drooper’s neck

vida, recobrava                                                                             When I’m closing in on death,

os tornozelos                                                                                 And you can’t help me

em pulos                                                                                        not you guys

assombrosos,                                                                                 or all your sweet girls with

enquanto movia                                                                             your sweet talk

seus lábios                                                                                     You can all go take a walk

em mares                                                                                       and I guess I just don’t know

de cantigas                                                                                     and I guess I just don’t know

cantigas e

cantigas,

não há espaço

não há morte

não há sorte

apenas ela

apenas seu corpo

apenas seu nexo

o perplexo ser

enquanto ela explode

a vida nele.

Mas mesmo assim, aquela voz, aquela maldita voz:


ONDE ESTÃO OS ORIGINAIS AUTOR

ONDE ESTÃO OS SETE MIL REAIS AUTOR

AUTOR!


A voz em seu pescoço, o arremessa na parede lateral e tenta fugir desesperada pela rua. Não vê o caminhão de reciclados que passava e arrebenta sua coluna cervical, cortando sua cabeça. Ainda assim suplicava pelo autor.


FADE OUT.


Os olhos abertos, no calendário quarenta e oito de fevereiro de dois mil e vinte e quatro. O alarme não mais ressoa, martela. John Cale e seu Drone ressoam.

9 de janeiro de 2024

, ,

O cheiro

Andava em desalento na calçada. Apenas resvalava no cotidiano, pois eram demais os pensamentos em toda fúria da discussão. Ao entrar, novamente perpassando-a, não notou o bilhete na mesa, colocado embaixo do cinzeiro que jamais estivera ali. Somente o cheiro da gaveta impregnava a casa.

29 de outubro de 2023

, ,

seco rosto

seco rosto anlágrimas

precipitar o desespero do precipício



estrago d’alma

quand’a calma órbita d’tormenta



peito macerado morre morno

no frio mascavo

,

como sempre

 por favor, eu queria pagar isso aqui.

pode passar por debaixo do vão por aqui

obrigado. de nada.


olha, tudo deu cento e sessenta e quatro reais.

caro né?   Ah;   as contas estão pela hora da morte.

bom aqui está, duzentos.

obrigada. de nada.


seu troco, catorze reais.

obrigado. de nada.


a senhora poderia… sim? ver esses resultados aqui.

lógico, pode passar pelo vão.

algum deles foi premiado?

deixa ver.

obrigado, de nada. 

20 de julho de 2022

crônicas sobre a pandemia III

por toda uma vida existiram apenas ordens. sempre e unicamente comandos. 
a ditar o caminho o medo como arreio puxado até mostrar os dentes. 
o vaso arremessado que achava seu caminho por entre as flores da mesa, sempre certeiro em exprimir
seus desejos. tudo era matemático, tudo era mimético, tudo era uma fivela, um vespeiro, chutes durante
sete quarteirões, braços torcidos, o banco, a cara e seus tapas.
tudo era uma jaula e eco, eco e força, força e poda, poda, eco, força e jaula. 
 
a perda óssea dentária pode ocorrer de muitas formas, umas delas é ligada ao extremo grau de pressão feito entre a mandíbula e maxila por longos períodos, outra forma interessante é ligada ao bruxismo.
é aí que as coisas ficam jovialmente interessantes.
se ocorrer a união desses dois fatores a doença periodontal se instala de uma forma rápida, 
acompanhada de um duplo diastema por conta da pressão entre esses dois segmentos ósseos. assim, a situação se resume em alguns sintomas dignos de novela:
sangramento abundante, dor, instabilidade dos dentes (com queda) e mais dor.
eu citei dor?
tudo era uma jaula e eco, eco e força, força e poda, poda e dor, dor, poda, força, eco e jaula.
 
quanto tempo uma pessoa pode permanecer presa?

quanto tempo uma pessoa pode permanecer em quarentena?

quanto tempo uma pessoa pode permanecer obedecendo ordens?
 
não havia uma quadra central. na verdade havia, mas a importância da matéria de educação física era tão grande 
dentro da escola, que todas as atividades eram realizadas no ginásio municipal. todas as classes e seus times estavam lá. infestação de masculinidade adornada em suas bordas pelo prédio do tiro de guerra, obrigatório em mais alguns anos.
suor e profusão hormonal que desencadeariam para alguns daqueles meninos em violência doméstica contra suas companheiras. alguns nem demorariam tanto.
outros já eram violentos sem ao menos precisar crescer até os dezoito anos.

estes eram reconhecíveis ao longe. 

seus olhos sempre foram secos e iluminados em períodos. iluminados de dentro para fora, com uma única cor independente de suas íris. a luz saia pelo nervo ótico e atravessava o cristalino para refletir uma mancha marrom que tomava toda a cavidade. era uma cor de terra encharcada, como se um animal pisoteasse o chão com tanta ferocidade que a mancha marrom perfurou e levou com ela metade da terra existente. ela refletida naqueles olhos marrons não existia mais, havia apenas um vazio. um vazio marrom.
um vazio marrom só percorrido pelo cabo da vassoura aterrado em suas costas.

a quadra, cercada por quatro arquibancadas, possuía em duas delas túneis usados como espaço de aquecimento aos times, ou a depender dos olhos, espaço para espancamento. naquele dia porém ambos estavam vazios, mas as arquibancadas não. nelas residiam por alguns minutos Nevada & Sergipe. estáticos como seus devidos locais tectônicos no mapa mundo, sem mover nem ao menos um dedo, como se não estivessem ali, como se nada além da milionésima fração de silêncio brutal onde seus dois encéfalos estavam completamente imersos existisse. apenas auras, nem ao menos elas, pois estas ressoam energia e ressoar energia gera som. mas eles estavam lá. era possível vê-los, não era nada alucinatório, muito menos alguma concussão causada pelas pancadas.

ou era?
a doença periodontal era silenciosa, concussão também deve ser.
mas elas estão separadas por muitos anos. 
não era.

estavam lá parados e criando curiosidade. nunca foram mesmo de muita conversa. um trabalhava depois das aulas como polícia mirim, o outro, repetente recorrente já andava de moto e trabalhava em um escritório.

polícia mirim era uma profissão na cidade criada pela prefeitura e polícia militar como forma de retirar os meninos e meninas da influência nefasta das drogas e álcool. o alcoolismo era uma das maiores fontes de problemas naquele lugar. não havia cultura, não havia escolas suficientes e socialmente quem deu as cartas foram os casamentos consanguíneos das famílias brancas latifundiárias da cidade. ou seja, ser alcoolista era apenas uma questão de tempo.
muitos deles formavam famílias e batiam em seus filhos.
tinham os mesmos olhos. 

enquanto Nevada & Sergipe desciam os degraus das arquibancadas era possível ver que um pedaço de saco plástico vazava pelos arrabaldes de uma das calças. mas como perguntar algo para alguém que estava com pressa e iria trabalhar. melhor seria esperar até quinta. o único problema é que antes haveria uma quarta feira.  
         
mas quarta feira é outro dia...
sete quarteirões de socos, pontapés e cabeça contra a parede. 
mas isso é outro dia. 

quinta feira:
o saco plástico era um receptáculo
o receptáculo era para um produto químico
o produto químico era cola de sapateiro
cola de sapateiro era um inalante
inalantes chegam mais rápido ao sistema nervoso central
numa quinta feira um inalante chamado cola de sapateiro percorreu um sistema nervoso central.

não era uma questão de desconexão com a realidade, muito menos as consequências sinápticas que aspirar
um produto químico traziam ao encéfalo emulsificado em repressão. há uma conotação a ser feita aqui, pois 
outros inalantes foram colocados à prova ao longo do tempo dentro do mesmo encéfalo por muito mais tempo
e com muito menos destempero aos efeitos, porém por ser o primeiro há sempre a possibilidade desta experiência ser colocada em alto patamar de loucura. mas não era o deslocamento do binômio corpo & alma, era o silêncio.
 
o silêncio, o silêncio e o...
silêncio.
 
a única fonte de reveladora paz era a completa falta de sonoridade que a cola de sapateiro dava ao mundo. tudo ficava quieto, não restava nem ao menos os sons pulmonares onde poderia se ouvir um pequeno chiado, uma pequena fresta bronquiolar por onde o ar entraria e assoviaria uma vida pequena, pelo menos um assovio talvez. nem isso. por precisão não era necessário nada mais que aquilo, todo o ruído que o mundo poderia proporcionar naqueles dias era apenas violência. não fazia sentido algum iniciar um novo ciclo já que a grande descoberta do século se alumiava logo ali na frente do desespero cartesiano. sem alarmes, sem surpresas, mas você já ouviu isso antes. mas ele estava lá, o silêncio. 
o corpo não respondia aos tremores que ele mesmo produzia, como se estes fossem pequenas brisas ondulares numa praia azul e sépia cola. por eles a cabeça perambulava na falta de gravidade e dentro do círculo amarelo que se formava ao fechar dos olhos os pés mergulhavam, do avesso, os levavam enquanto puxavam as pernas que seguiam. mais alguns segundos todo o corpo fazia morada ali. não seria diferente, não seria nada além disso por mais de dez segundos. a enésima maravilha de uma vida revelada em uma urna sem som, onde o corpo sem pancadas repousaria e dormiria por séculos. pelo menos até o final dos dez segundos. 
 
três anos de pandemia e muita coisa foi gritada ao longo de todas as arquibancadas possíveis. um tiro de guerra do tamanho de uma país tocando ordens de morte, revelando famílias inteiras de genética quatrocentona que preferem matar mais de seiscentas mil pessoas a tentar dissolver do poder uma outra família, de viés neo nazista e sua ss, sua gestapo e seu reich do telegram. há até espanto em toda terminologia, mas as coisas devem ser chamadas pelo seu nome... 
as coisas devem ser chamadas pelo seu nome:
 
cola de sapateiro,
os bolsonaros são neo nazistas
ss
gestapo
reich
pastores pedófilos
ministros bandidos
presidentes de bancos estupradores
espancadores de merda
os filhos duma puta do MBL
 
moramos por três anos em túneis do ginásio municipal. espancados e colocados como corpos a serem defenestrados. veja bem que existem categorias que foram muito mais defenestradas do que outras e mesmo assim todos foram. não há silêncio, não há cola. o solvente que existe não consegue nem ao menos nos trazer quietude, pois manter o encéfalo longe das situações é impossível já que é preciso comer. o único silêncio é o tempo entre as bolhas, as que saem do nariz enquanto nossas cabeças são forçadas dentro da privada cheia d'água. e haverá o tempo onde silêncio será aquele que precede o choque, aquele da porta do avião a abrir-se para que os corpos sejam despejados no mar. e haverá o silêncio dos desaparecidos, que se tornarão fantasmas.      

não existe cola de sapateiro que dê jeito nesta violência. não existe solvente que ajude, muito menos duas regiões do planeta que salvem-nos desta merda onde estamos enfurnados até o pescoço.
mas há o revide, há o grito, há o urro, há a pedra na vidraça, há a rua e há o caminhar em grupo.

o silêncio apenas deslocou a realidade e deixou como herança uma receita de lítio, carbamazepina, diastemas duplos e gengivas que sangram. 
e a eterna perseguição de dois olhos marrons.

1 de junho de 2022

a mesa

aquela mesa era um calabouço
dividida por duas gerações
dividida por duas pessoas
que mal se conheciam
enquanto permaneciam em seus assentos
porém possuíam o mesmo sobrenome

era uma mesa de fórmica
branca
quatro cadeiras
-vieram de fábrica-
serviam de proteção à uma das gerações
arma para outra

porém as duas esperavam
cada uma em seu canto
esperavam a mesa dissolver
esperavam uma esperança nesta mesa
esperavam uma bala na cabeça
nesta mesa esperavam...

aquela mesa era um colapso
as aulas que foram perdidas
descoladas de um dos corpos
como se fosse um preparo
experimento em cima desta mesa
ser preparada
perpetuada como antes
sua mãe fora
no chicote atrás da porta

esta mesa era arame farpado
rasgando rosto até o osso
impedindo o voo
segurando as asas
desaladas como jornal rasgado
essa mesa separa duas gerações
no mesmo laboratório

duas pessoas de longe
na mesma mesa
placas tectônicas as prendem
chicote as mantém perto
o riste em riste seco
a mesa é apenas o trôpego
o bêbado
a decepadora
que rompe a folha
um desespero que debilita
as duas pessoas esperam
seu futuro
nesta mesma mesa
separadas por décadas

jamais se encontrariam
mesmo ali
naquele mesmo espaço
naquela mesma mesa
a fórmica fria jamais seria
um local do abraço
apenas da separação
levada por décadas até a tela de um telefone
anos depois
mesmo sentados no mesmo local
na mesma mesa
apenas restavam aos dois
o espanto da distância
cadeiras empurrando destinos
desespero da não linguagem
vazio de acenos feitos por partes
queimadas com ferro de passar
ou canudos frios

separados na mesma mesa
o não
o impotente
um soco
a desistência
aquele colégio empurrado pelo abismo
a incapacidade do encontro
na mesma mesa
ali parada
estática como lágrima
impedida de cair por completo

15 de março de 2022

filtro

pensar penar perdurar perder
sem pestanejar
partir para partes
persistir

devastado

acordar oprimido enquanto
se masturba
na cozinha

afasta todas as ilusões 
resta apenas o fracasso

as duas manchas de sangue falso
escorrem pelo filtro de barro
não escondiam o mofo externo

como um torno aperta
vagaroso
o ar
dentro do peito

27 de janeiro de 2022

provisório

esta mesa era um açoite
toda de-s-anima e largar
vida que se apresenta
simples instinto da dor

como se fosse fardo
como se a derrota fosse fato inexorável
como se o corpo estivesse longe
vendo a alma perecer

não existo dentro do cotidiano
sobrevivo moldante de sonhos
em casas imaginárias

onde escadas escorrem
amor d'água
marinheiras navegam em mares lodos

minto à mim mesmo
sorrindo no açoite
fingindo poesia
enquanto mãos queimam.

22 de julho de 2021

7 de julho de 2021

Flor de lótus

Os raios solares
descreviam camadas descendentes
na pele aos poucos ressecada
 
Muito mais ao norte que gostaria
pernas semi longas
cabelo raspado há quinze dias
não apresentavam contrastes
com sua pele branca e olhos castanhos.

Não havia nada maravilhoso
em seus fenótipos,
naquele dia em especial
muito menos.

Sentia cada pedaço da radiação
invadir suas recentes marcas de expressão
e,
ressabiado permanecia
pelo correr dos dias.

Passos pequenos na direção do trabalho,
passos menores na direção da volta.

Um suspiro dentro do metrô
nervosismo de trabalhar em masmorra cartesiana
suspiro de alívio ao voltar para casa.