20 de julho de 2022

crônicas sobre a pandemia III

por toda uma vida existiram apenas ordens. sempre e unicamente comandos. 
a ditar o caminho o medo como arreio puxado até mostrar os dentes. 
o vaso arremessado que achava seu caminho por entre as flores da mesa, sempre certeiro em exprimir
seus desejos. tudo era matemático, tudo era mimético, tudo era uma fivela, um vespeiro, chutes durante
sete quarteirões, braços torcidos, o banco, a cara e seus tapas.
tudo era uma jaula e eco, eco e força, força e poda, poda, eco, força e jaula. 
 
a perda óssea dentária pode ocorrer de muitas formas, umas delas é ligada ao extremo grau de pressão feito entre a mandíbula e maxila por longos períodos, outra forma interessante é ligada ao bruxismo.
é aí que as coisas ficam jovialmente interessantes.
se ocorrer a união desses dois fatores a doença periodontal se instala de uma forma rápida, 
acompanhada de um duplo diastema por conta da pressão entre esses dois segmentos ósseos. assim, a situação se resume em alguns sintomas dignos de novela:
sangramento abundante, dor, instabilidade dos dentes (com queda) e mais dor.
eu citei dor?
tudo era uma jaula e eco, eco e força, força e poda, poda e dor, dor, poda, força, eco e jaula.
 
quanto tempo uma pessoa pode permanecer presa?

quanto tempo uma pessoa pode permanecer em quarentena?

quanto tempo uma pessoa pode permanecer obedecendo ordens?
 
não havia uma quadra central. na verdade havia, mas a importância da matéria de educação física era tão grande 
dentro da escola, que todas as atividades eram realizadas no ginásio municipal. todas as classes e seus times estavam lá. infestação de masculinidade adornada em suas bordas pelo prédio do tiro de guerra, obrigatório em mais alguns anos.
suor e profusão hormonal que desencadeariam para alguns daqueles meninos em violência doméstica contra suas companheiras. alguns nem demorariam tanto.
outros já eram violentos sem ao menos precisar crescer até os dezoito anos.

estes eram reconhecíveis ao longe. 

seus olhos sempre foram secos e iluminados em períodos. iluminados de dentro para fora, com uma única cor independente de suas íris. a luz saia pelo nervo ótico e atravessava o cristalino para refletir uma mancha marrom que tomava toda a cavidade. era uma cor de terra encharcada, como se um animal pisoteasse o chão com tanta ferocidade que a mancha marrom perfurou e levou com ela metade da terra existente. ela refletida naqueles olhos marrons não existia mais, havia apenas um vazio. um vazio marrom.
um vazio marrom só percorrido pelo cabo da vassoura aterrado em suas costas.

a quadra, cercada por quatro arquibancadas, possuía em duas delas túneis usados como espaço de aquecimento aos times, ou a depender dos olhos, espaço para espancamento. naquele dia porém ambos estavam vazios, mas as arquibancadas não. nelas residiam por alguns minutos Nevada & Sergipe. estáticos como seus devidos locais tectônicos no mapa mundo, sem mover nem ao menos um dedo, como se não estivessem ali, como se nada além da milionésima fração de silêncio brutal onde seus dois encéfalos estavam completamente imersos existisse. apenas auras, nem ao menos elas, pois estas ressoam energia e ressoar energia gera som. mas eles estavam lá. era possível vê-los, não era nada alucinatório, muito menos alguma concussão causada pelas pancadas.

ou era?
a doença periodontal era silenciosa, concussão também deve ser.
mas elas estão separadas por muitos anos. 
não era.

estavam lá parados e criando curiosidade. nunca foram mesmo de muita conversa. um trabalhava depois das aulas como polícia mirim, o outro, repetente recorrente já andava de moto e trabalhava em um escritório.

polícia mirim era uma profissão na cidade criada pela prefeitura e polícia militar como forma de retirar os meninos e meninas da influência nefasta das drogas e álcool. o alcoolismo era uma das maiores fontes de problemas naquele lugar. não havia cultura, não havia escolas suficientes e socialmente quem deu as cartas foram os casamentos consanguíneos das famílias brancas latifundiárias da cidade. ou seja, ser alcoolista era apenas uma questão de tempo.
muitos deles formavam famílias e batiam em seus filhos.
tinham os mesmos olhos. 

enquanto Nevada & Sergipe desciam os degraus das arquibancadas era possível ver que um pedaço de saco plástico vazava pelos arrabaldes de uma das calças. mas como perguntar algo para alguém que estava com pressa e iria trabalhar. melhor seria esperar até quinta. o único problema é que antes haveria uma quarta feira.  
         
mas quarta feira é outro dia...
sete quarteirões de socos, pontapés e cabeça contra a parede. 
mas isso é outro dia. 

quinta feira:
o saco plástico era um receptáculo
o receptáculo era para um produto químico
o produto químico era cola de sapateiro
cola de sapateiro era um inalante
inalantes chegam mais rápido ao sistema nervoso central
numa quinta feira um inalante chamado cola de sapateiro percorreu um sistema nervoso central.

não era uma questão de desconexão com a realidade, muito menos as consequências sinápticas que aspirar
um produto químico traziam ao encéfalo emulsificado em repressão. há uma conotação a ser feita aqui, pois 
outros inalantes foram colocados à prova ao longo do tempo dentro do mesmo encéfalo por muito mais tempo
e com muito menos destempero aos efeitos, porém por ser o primeiro há sempre a possibilidade desta experiência ser colocada em alto patamar de loucura. mas não era o deslocamento do binômio corpo & alma, era o silêncio.
 
o silêncio, o silêncio e o...
silêncio.
 
a única fonte de reveladora paz era a completa falta de sonoridade que a cola de sapateiro dava ao mundo. tudo ficava quieto, não restava nem ao menos os sons pulmonares onde poderia se ouvir um pequeno chiado, uma pequena fresta bronquiolar por onde o ar entraria e assoviaria uma vida pequena, pelo menos um assovio talvez. nem isso. por precisão não era necessário nada mais que aquilo, todo o ruído que o mundo poderia proporcionar naqueles dias era apenas violência. não fazia sentido algum iniciar um novo ciclo já que a grande descoberta do século se alumiava logo ali na frente do desespero cartesiano. sem alarmes, sem surpresas, mas você já ouviu isso antes. mas ele estava lá, o silêncio. 
o corpo não respondia aos tremores que ele mesmo produzia, como se estes fossem pequenas brisas ondulares numa praia azul e sépia cola. por eles a cabeça perambulava na falta de gravidade e dentro do círculo amarelo que se formava ao fechar dos olhos os pés mergulhavam, do avesso, os levavam enquanto puxavam as pernas que seguiam. mais alguns segundos todo o corpo fazia morada ali. não seria diferente, não seria nada além disso por mais de dez segundos. a enésima maravilha de uma vida revelada em uma urna sem som, onde o corpo sem pancadas repousaria e dormiria por séculos. pelo menos até o final dos dez segundos. 
 
três anos de pandemia e muita coisa foi gritada ao longo de todas as arquibancadas possíveis. um tiro de guerra do tamanho de uma país tocando ordens de morte, revelando famílias inteiras de genética quatrocentona que preferem matar mais de seiscentas mil pessoas a tentar dissolver do poder uma outra família, de viés neo nazista e sua ss, sua gestapo e seu reich do telegram. há até espanto em toda terminologia, mas as coisas devem ser chamadas pelo seu nome... 
as coisas devem ser chamadas pelo seu nome:
 
cola de sapateiro,
os bolsonaros são neo nazistas
ss
gestapo
reich
pastores pedófilos
ministros bandidos
presidentes de bancos estupradores
espancadores de merda
os filhos duma puta do MBL
 
moramos por três anos em túneis do ginásio municipal. espancados e colocados como corpos a serem defenestrados. veja bem que existem categorias que foram muito mais defenestradas do que outras e mesmo assim todos foram. não há silêncio, não há cola. o solvente que existe não consegue nem ao menos nos trazer quietude, pois manter o encéfalo longe das situações é impossível já que é preciso comer. o único silêncio é o tempo entre as bolhas, as que saem do nariz enquanto nossas cabeças são forçadas dentro da privada cheia d'água. e haverá o tempo onde silêncio será aquele que precede o choque, aquele da porta do avião a abrir-se para que os corpos sejam despejados no mar. e haverá o silêncio dos desaparecidos, que se tornarão fantasmas.      

não existe cola de sapateiro que dê jeito nesta violência. não existe solvente que ajude, muito menos duas regiões do planeta que salvem-nos desta merda onde estamos enfurnados até o pescoço.
mas há o revide, há o grito, há o urro, há a pedra na vidraça, há a rua e há o caminhar em grupo.

o silêncio apenas deslocou a realidade e deixou como herança uma receita de lítio, carbamazepina, diastemas duplos e gengivas que sangram. 
e a eterna perseguição de dois olhos marrons.