25 de junho de 2011

 Remodelar sinapses e preceitos enraizados dentro de sua mais interna porção de miocárdio, não é tarefa destinada aqueles com vocação para nada que não seja o mais grandioso entorpecer de alma. Mudar direções que te levam sempre pelas estradas do mais fácil ou mais comum, muitas vezes é doloroso.
Transformam marcas em profundas fendas no seu corpo, que se fazem sentir em cada ligação de pele existente em seu endoesqueleto. Articulações que doem ao menor contato com o vento frio à chicotear sua face.
Um dolorido ventricular, capaz de causar paralisia interminável, quando sente-se a mudança cavalgando em sua direção.
Impávida e cheia de propósito, com todos os clichês piegas da remodelação.

Mas essa mesma mudança de direção, pode fantasiar-se em uma troca territorial.
Assim como a que aconteceu com uma das bandas mais viscerais dessa última década.

THE DEVASTATIONS.

Nascer em terreno arenoso, onde a maioria de seus compatriotas em claves primam pela vulcanidade das notas, é alguma coisa que intuitivamente já deixa marcas em seu pensamento. Imagine-se por exemplo, em uma terra como o Brasil, onde a intelectualidade do som está na poesia da língua mãe, uma banda que canta em inglês.
Aceitação pode transformar-se em vocábulo mais complicado que o Axioma das Escolhas.
Mas o caminho percorrido nunca é o mais importante, mas sim como se anda por ele.
Eis mais um dos clichês da mudança. E você vai encontrar milhares deles nesse texto, afinal de contas o clima é esse mesmo. A breguice dos tons transvestidos em barroco rococó, na neuronal intelectualidade que corrói a farsa da sociedade moderna. O manto da pieguice fantasiada em equação descolada.


Tom Carlyon, Hugo Cran e Conrad Standish, tem em comum o gosto pelas tonalidades mais sombrias e estranhas da face da Terra. Melbourne, na Austrália é o berço desse trio que iniciou suas atividades em 2002. Mas caminhar nas arenosas pradarias de AC/DC não é tarefa fácil. Por isso amalgamar Giogio Moroder (pioneiro músico italiano, que iniciou a discoteca no país) com Nick Cave pedia uma mudança de ares. Assim a banda resolveu andar pelo continente com os entrecantos mais escuros, a Europa. Inicialmente a cidade de Berlim parecia o mais reconfortante local, para a opereta em desespero que nasceria depois.


Em 2003, a banda possuia algumas demos gravadas, mas nada além disso. Tocaram inúmeros shows pela Alemanha e quase um ano depois, durante uma apresentação na Bélgica junto com a banda Clogs, a gravadora Brassland Records entrou na história. Depois dos shows, vinhos e conversas com Padme Newsome (músico que tocou viola e violino nos discos da The National e também com os Clogs). Os Devastations então resolvem entrar para a gravadora. Não havia disco, show grandioso.
Apenas algumas demos e mais nada.

Assim nasceu o álbum de estréia em 2003. Homônimo, que ganhou uma reedição para o mercado americano em 2010. Dois anos depois, 2005, explodiu Coal. A catapulta para que a banda fosse definida por Karen O' (Yeah Yeah Yeahs), como a melhor coisa que ela já escutara em décadas. Maduros e com a carreira já nos trilhos, em 2007 a banda concebe Yes, U. Desde então o último registro de inéditas.

Mas a questão aqui não é apenas como nasceu o por onde andou a banda. Existe algo dentro do som desses três trovadores barrocos binários, que vai fazer com que exista uma verdadeira revolução de conceitos dentro de sua alma. Não apenas por mudar paradigmas quanto ao que você considera sonoridade brega, mas também construir uma admiração maior ainda pelo cancioneiro popular brasileiro. Ouvindo às canções da banda, fica fácil entender a genialidade de personas como Amado Batista, Rogério Skylab, Falcão, Odair José e em uma escala mais abrangente, Ultraje à Rigor.

 E não pense você, refinado ouvinte de elevadores, que as linhas começarão em alguma nota favorável ao vocalista Conrad Standish. Um desses front man, que você menina sonhadora com Tom Waits embalando seus sonhos através da voz, vai querer realizar uma orgia faríngea à três. A catarse aqui é como compor e conduzir canções sobre o mais escancarado amor, a mais suja trepada e a fusão em lava de corações repletos de entrecantos, com a mais descarada cara de pau do planeta. Safadeza lisérgica de um cordel mexicano, mas com músicas e letras que refletem o mais visceral quadro de sentimentos. Dolorido, recoberto de fuligem ventricular e desespero.


Mas ao mesmo tempo com mudanças de tempos e claves, com uma das mais grandiosas maestrias dentro do rock dito alternativo. Como seus grandes mestres, não adianta rotular canções que possuem linhas como essa:

"You can drink me under the table, 
but don't forget what I am. 
I am allright now, deep in your arms tonight.
Close the door, shot out the light, 
and just love me tonight...."

"I got a sickness in my bones.
I start to shake,
when I am alone
It's getting cold, 
I beginning to see the light,
Just hold the door".  (Hold Me).

"Ao te ver pela primeira vez
Eu tremi todo
Uma coisa tomou conta
Do meu coração...


Com esse olhar
Meigo de menina
Me fez nascer no peito
Esta paixão...
"  (Princesa, Amado Batista).

Isso é poesia da veia mais cafona possível. Repleta de imagens cheias de amalgamas clichês tão doídos quanto a pele que se rasga por amor. Mas mesmo quando a canção pede uma calma noveleira, é interrompida por uma parede poderosa em riffs de guitarra tão febris quanto uma trepada em cima da mesa da sala. A saliva que escorre pelos bicos dos seios endurecidos, como em um livro de Sidney Sheldon. Piegas, suado e completamente melado. Mas a banda consegue, de maneira ímpar, compor uma sinfonia de acordes que nunca são tão óbvios quanto parecem e que deixam a calefação de sua cabeça sem fôlego.

Não existe uma maneira sutil de enfrentar essa onda volátil de energia que aos poucos coloca sua alma em desabalada carreira. Audicionando os três discos da Devastations, fica clara a qualidade dos três como músicos. Não existem saídas fáceis e por inúmeras vezes será de bom grado ouvir a canção repetidas vezes. Pois as camadas são em diferentes direções e por dezenas de caminhos diferentes. Os arranjos tem a mesma maestria de discos como Mondo Cane. Não apenas uma regurgitação de temas e canções, mas originais claves dentro de um mundo que é tão escuro como popular. Erudição para às massas, feita de maneira genial.

"Eu e você fazendo som,
a gente fica preso num quarteto de cordas,
e é um tom, é um semi-tom, é uma porção colcheias.
Sempre é verão no coração e tudo fica branco, verde, azul, amarelo
e rosa-choque e furta-cor, é tudo pintura.
Eu e você, como é tão bom,
a gente fica juntos como dois enamorados que se comem,
que se cospem, que se beijam no escuro
". (Eu e Você, Rogério Skylab)

"Let's put my shoes, down under your bed.
Dig my nails, down under your skin.
Under the shower, and under the sheets.
Under my spell, under your chin...

Under the sky, under the stars.
Under the city, under the sea.
I wanna get under, 
get under with me." (Under)


São linhas e mais linhas de palavras sopradas por ventrículos pulsantes. Acordes e mais acordes onde se misturam centenas de gêneros. Do mais pesado ao mais brando dos sussurros. Tudo isso envolto em ternos bem passados. Não existe pressa por mostrar qualquer tipo de erudição. Cada nota é tocada como se a vida dependesse dela. Cada palavra posta em poema de desespero e por muitas vezes libertação de sentimentos, escorrendo pelas linhas de qualquer crônica escrita por Xico Sá. Você pode até tentar fugir, mas quando der por si, já não existe mais força de retorno desse calabouço de sensações que as canções trazem em sua genética.

Em um mundo onde a salvação reside em cada banda descolada da semana, a carreira da Devastations deve ser acompanhada bem de perto. Não existe vergonha nenhuma em soar clichê ou piegas demais. Danem-se os binários secos e retos com seus sentimentos, em masturbatórias salas escondidas. O trio aflora tudo o que sente, clave por clave, com o coração tão escancarado quanto Odair José.

"...Minha vida pode ter fim
Quando o dia chegar
Não precisa dizer nada pra não se arrepender
Tem certos momentos na vida que o silêncio é melhor
Esqueca que a chuva lá fora ainda não parou
 

Peça pra que o dia não chegue
Pois você me encontrou
Esta noite você vai ter que ser minha
Esta noite vai ser feita pra nós dois
 

Nem que seja dessa vez e nunca mais
Só não quero deixar nada pra depois
." (Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha, Odair José)

"I retreat to my corner
When you get back in yours
I retract all my statements
When you retract your clothes

But darling I don't wanna lose you, not tonight
But darling I don't wanna lose you, not tonight, no not tonight

Just put your little hand in mine, dry your eyes
We only as sick as our secrets
You know I don't lie – but sometimes I lie

Now our eyes fill with water
While our bones soak with rage
I didn't want to end it like this
But I won't survive in this cage

But darling I don't wanna lose you, not tonight
Darling I don't wanna lose you, not tonight, no not tonight" (I Don't Wanna Lose You Tonight)

Se a sua erudição não é capaz de apreciar toda essa alma que escorre em letras e canções como essas, seu caminho para a iluminação pode ser mais longo do que se imagina. Aqui não reside o caso de hipsterianos sentimentos, mas sim colocar a cara no caminho do tapa. Diferenciar ações com sua mais poderosa crença. Enfrentar o escárnio dos críticos magistrados nos mais refinados nascedouros de cultura. Com o peito aberto, sangrando sentimentos bregas e com a mais poderosa coleção de riffs e arranjos.

Obviamente que uma bela dose de canalhice é sempre bem vinda, mas a The Devastations anda por caminhos mais tortuosos que uma simples crítica. O ponto onde as coronarianas catarses são violentas, e por assim dizer, mais puras ainda.
Ouça a espetacular reedição do disco de estréia e Coal abaixo.