19 de outubro de 2011

GD 115. A PARALISIA DO SORRIR.


Uma vez eu conheci Paulinho.

Paulo Josué Moraes de Almeida, aos dezessete anos gostava de maconha como se ela fosse um belo prato de arroz e feijão (como ele mesmo gostava de explicar). Fumava aos montes, pois isso o deixava mais atento durante as tarefas diárias e enfadonhas que seu pai alcoólatra  o obrigava fazer. Muitas delas um aglomerado de impossíveis trabalhos à serem realizadas dentro do árido clima da cidade de Garça, no interior de São Paulo. A desconexão com o resto do Brasil nos anos oitenta era tamanha, que a maior aflição dos populares, residia apenas no rodopio do destino nas peças de dominó ou na passagem dos chamados estrangeiros pela praça central. Elas que são formas exatas de fenocópias geológicas. Todas tem um monumento que olha diretamente para a sacada da Igreja Matriz da cidade.

Mas em um quinto dia do outubro, dentro de raios psicodélicos do sol vermelho granja, a vida de Paulinho mudaria. Mutação feita pelo chicote realizado por sua coluna cervical.
Movimento quase enxadrista da fisiologia humana, que o deixou eternamente tetraplégico. Com apenas movimentos do ombros e pescoço, o doravante menino e seus olhos profundamente entristecidos esverdeados, agora vagava por uma série de cirurgias, comas e escaras. Aos quarenta e dois anos, suas pernas eram tão gélidas quanto um iceberg amargo. As mãos não realizavam extensões e seu pênis era apenas um canal de passagem morto para a urina. Não existia ereção, muito menos ejaculação. O sexo de Paulinho vivia em constante anteparo de uma sonda que estuprava diarimente sua uretra.


Mesmo assim ninguém conseguia beber mais do que ele. Em todas as festas que frequentava, não existia maior alma, muito menos sarrista. Safo e repleto de roteiros em comédias da vida mundana, sempre fora o espírito adolescente das fanfarronices com estudantes. Mas os olhos sempre permaneceram inertes. Verdes e tesudos, mas sempre semi-mortos.
O que não o impedia de criar e viver.
Mesmo quando suicidou-se com uma overdose de cocaína aos quarenta e nove anos de idade.

Mas esse filho do granjeiro de Garça não foi o único exemplo dessa arte. A de levar tragédias com a graça de um palhaço trôpego em picadeiro paralisado.


O cantor e compositor Vic Chesnutt, também assim fora.
Nascido em Jacksonville e considerado uma das maiores hecatômbes no que se diz respeito à composição dentro do folk rock, suas palavras eram muitas vezes motivo de risos soltos e hilários. Mas dentro de cada piada contada, muitas vezes por ele mesmo, existia uma potente crítica para com o mundo e a solidão da alma humana.
O acidente de carro que ocasionou sua paralisia, não acabou com a velocidade de suas sinapses. Tornou-se compositor de simples acordes já que suas mãos não mais obedeciam suas vontades. Entretanto suas músicas são solidificações tão latentes, que influenciaram centenas de pessoas e músicos que o ouviam. Jamais deixou transparecer sua tristeza, mesmo quando escreveu sobre suicídio (na canção Flirted With You All My Life, dos disco At The Cut).
O primeiro disco nasceu com a produção de Michael Stipe e logo de cara deixava claro, como em Dylan, que a simplicidade era uma das maiores armas dentro das claves.

Little produziu um dos apelidos que jamais deixariam o cantor, a canção Speed Racer. Um hino de vida tão agudo que por muitas vezes, o sorrir transforma-se em lágrimas. O verso "eu não sou uma vítima, sou um ateu", deixa claro como eram as letras do músico. 

Foi o acidente que despertou em Vic o cantar e escrever.
Crítico ferrenho do sistema de saúde americano (muito antes de Michael Moore), morreu endividado com o alvo de suas críticas. Uma série de cirurgias e tratamentos mal conduzidos tomaram quase tudo aquilo que a família possuía. O que fez Kristin Hersh (Throwing Muses), criar um site para ajudá-los, logo após a morte do cantor.  
Chesnutt deixou uma legião de fãs ávidos por mais e repletos de lembranças em sorrisos por suas tiradas sarcásticas e canções sobre a vulnerabilidade humana.
Algo que mesmo depois do suicídio aos 45 anos no ano de 2009, ainda é tão relevante quanto o respirar. 

O documentário The Life And Music Of Vic Chesnutt, mostra todos os lados desse ser humano impecável.
Assista ao trailer.