Recostada
na linha divisória entre a sala e a sacada, ela pairava seu pé levemente acima
do azulejo amarelo possuidor do canto superior esquerdo desgastado pelo tempo.
O céu vermelho lava pairava solitário pelo ar do final de tarde de outono,
perfazendo manobras drásticas através de suas nuvens em forma de veias que
pulsavam latentes urgências sonoras. Por entre as frestas dos prédios vizinhos
ela calculava o espaço necessário para que seu corpo não batesse em nenhuma
parte do concreto. Seus olhos fundiam o horizonte cinza das construções eólicas
e por instantes a única coisa que chamava sua atenção eram as luzes acima do
último prédio. Um calhamaço reluzente de quatro canhões de luzes que alternavam
as cores azul, branco, amarelo e verde. Em um primeiro instante os feixes
descreviam apenas uma coluna, para depois de alguns segundos abrirem-se em
linhas que refratavam na penúltima camada da atmosfera. Os olhos dela
lisérgicos e hipnotizados por entre a dança que os feixes descreviam, hora
abrindo-se em quatro, hora rodando em círculos tetraédricos. Dela saia um olhar
que percorreu todo o trajeto até as luzes, todos os centímetros precisos que
seriam necessários para que seu impulso fosse exato e poderosamente sem
equívocos. Pulsos vindos de seu mais interno cíngulo exalavam a visão de como
seria pairar por entre as camadas de ar e pulsar suas mãos naqueles feixes de
luz. Sentia-se viva a cada braçada levitada que seu corpo descrevia em sua
imaginação, por entre as janelas e rostos dos perplexos espectadores e seus
afazeres diários de início de noite. Latente desejo de viver por entre cada
baforada de nuvens arroxeadas que escondiam possíveis pássaros no caminho. Seu
pé esquerdo então aterrisa no azulejo desgastado, por um momento hesitante e
exalante ela para. Duvida da capacidade de seu corpo torrencial e dentro de
seus ouvidos uma brisa sussurrada lhe provoca tremores. E se o impulso for
apenas força de gênese e não inércia? A fumaça do cigarro hipnotiza a sacada e
toma conta de todo o espaço em vácuo que separa a rua de seu prédio. As luzes
hipnotizam sua medula como se os quatro feixes formassem uma mão acolhedora.
Ela não pensa e apoia os dois pés no chão, olha mais uma vez pela janela
posicionada do seu lado esquerdo. Seus braços trêmulos não conseguem
diferenciar o que é alma e o que é corpo. Uma pequena gota salínica de suor
exterioriza o medo que pulsa por entre cada artéria. Descompassado seu coração
inerte não consegue atender a demanda de explosões elétricas que afloram por
entre cada centímetro de epiderme e assim seu corpo grita em cada poro por uma
liberdade aérea. Ela impulsiona o chão e suas retinas secas apenas conseguem
refletir as imagens que vão ficando cada vez menores e posteriores, conforme
seu corpo sobe em direção às luzes. O impulso funciona perfeitamente e seu
corpo passa a centímetros da parede esquerda e com uma violência viral sua
velocidade aumenta cada vez mais. Ela não estende as mãos, traz seus braços
junto ao corpo como nos filmes de paraquedismo que assistira durante a vida
toda. Seu corpo agora é mais leve que o ar pesado da metrópole e ela voa em
direção as luzes. Cada rajada de venosa que o vento despeja pelos seus cabelos
castanhos é agraciada com um sorriso aberto forçado pela violência do ar. Sua
face agora molda ondulações que iniciam do canto de sua boca até suas têmporas.
Seu voo é paralelo aos deuses e rente ao céu, seus olhos observam todas as
molduras sobrepostas das antenas que cada vez mais parecem pontos escondidos
pelo concreto sujo. Ela vira seu rosto na direção do horizonte quando o reflexo
das luzes toca delicadamente sua camiseta, havia chegado. Nesse instante seu
corpo paira sobre os quatro canhões de luz. O desenho do feixe único recobre
todo seu corpo, formando um amálgama de cinco cores. Ela sente cada batimento
acelerado e tenebroso libertar as células invadidas pela luminescência. Livre
afinal, sua alma levita em cada doce nota orquestrada nas claves de sol de sua
pele. Descrevendo piruetas modernas, ela se vê envolta em luz como se um útero
acolhedor e brilhante a levasse de volta aos lugares mais seguros. Nesse
instante o feixe único começa a dividir-se em quatro linhas e então dentro de
seu peito algo acontece. A oitava costela começa um tilintar de pequenas
erupções sonoras que produzem um lamento agudo metálico. Tremores regurgitam
dentro de suas mãos fazendo com que seu corpo vagarosamente comece a ser tomado
por espasmos cada vez mais fortes. Seus músculos tensos são eletricamente
puxados em direções opostas e explodem em um grito agudo de dor. Cada vez mais
forte, a onda de sons vulcânicos percorre agora todo seu plexo e de repente a
luz transpassa seu corpo como lâmina afiada. Ela perde o controle e a luz
torna-se soberana masmorra. O feixe que corta seu peito e vai estilhaçando suas
vísceras vai aos poucos se dividindo. Ela consegue ver cada pedaço de pele
sendo liquidificado e cortado em pequenas peças de um quebra cabeça disforme.
Cada feixe de luz vai em direção aos seus braços e pernas. Durante o trajeto
sua pele é rasgada e seu sangue aos poucos evapora em direção às nuvens
arroxeadas. Inerte ela apenas aprecia seus músculos sendo descolados dos ossos
que dissolvem por entre os reflexos. Quando atingem o maior grau de separação,
as luzes mostram um desenho de um corpo de mulher esticado em quatro direções
opostas. Rosa dos ventos emoldurada por artérias que insistem em pulsar os
últimos centímetros de vida elástica retida no sereno que cai dentro dos olhos
dela. Nesse instante os feixes começam a tracionar mais e mais seus tendões,
que vão sendo sugados pela origem das luzes. Ela sente os fios viscerais
passarem pelas bordas ósseas, formando alavancas que esticam sua pele ao
máximo. Fio por fio, ligamento por ligamento seu corpo vai sendo pregado nos
canhões abaixo. Acordada ela sente cada pressão e cada rajada de vento que a
quer libertar desse martírio e deixar seu corpo levitar pelo ar, mas já é tarde
demais e a cada tentativa de liberdade seu corpo é tracionado e a dor é
lacerante. Seus olhos extrapolam o limite do crânio e são invadidos por um medo
primal e servil, fazendo com que a pele que está sendo esticada em um nível
máximo ao redor de suas órbitas, pressione uma glândula e assim uma gota
lacrimosa de sangue cai em direção ao chão acinzentado. Um grito corta o ar da
metrópole, suspirado por entre canais do coração que desacelera em um platô
liso e dissecante. Ela percebe que está na verdade no chão de sua sala com suas
mãos ainda calcificadas pelo medo. Nota a seringa que ainda repousa
delicadamente em seu braço direito. O garrote faz com que as pontas de seus
dedos permaneçam arroxeadas. Nesse instante a pressão em sua alma é tamanha que
uma gota de sangue em lágrimas cai no chão da sala.