13 de fevereiro de 2013

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Voo livre


Recostada na linha divisória entre a sala e a sacada, ela pairava seu pé levemente acima do azulejo amarelo possuidor do canto superior esquerdo desgastado pelo tempo. O céu vermelho lava pairava solitário pelo ar do final de tarde de outono, perfazendo manobras drásticas através de suas nuvens em forma de veias que pulsavam latentes urgências sonoras. Por entre as frestas dos prédios vizinhos ela calculava o espaço necessário para que seu corpo não batesse em nenhuma parte do concreto. Seus olhos fundiam o horizonte cinza das construções eólicas e por instantes a única coisa que chamava sua atenção eram as luzes acima do último prédio. Um calhamaço reluzente de quatro canhões de luzes que alternavam as cores azul, branco, amarelo e verde. Em um primeiro instante os feixes descreviam apenas uma coluna, para depois de alguns segundos abrirem-se em linhas que refratavam na penúltima camada da atmosfera. Os olhos dela lisérgicos e hipnotizados por entre a dança que os feixes descreviam, hora abrindo-se em quatro, hora rodando em círculos tetraédricos. Dela saia um olhar que percorreu todo o trajeto até as luzes, todos os centímetros precisos que seriam necessários para que seu impulso fosse exato e poderosamente sem equívocos. Pulsos vindos de seu mais interno cíngulo exalavam a visão de como seria pairar por entre as camadas de ar e pulsar suas mãos naqueles feixes de luz. Sentia-se viva a cada braçada levitada que seu corpo descrevia em sua imaginação, por entre as janelas e rostos dos perplexos espectadores e seus afazeres diários de início de noite. Latente desejo de viver por entre cada baforada de nuvens arroxeadas que escondiam possíveis pássaros no caminho. Seu pé esquerdo então aterrisa no azulejo desgastado, por um momento hesitante e exalante ela para. Duvida da capacidade de seu corpo torrencial e dentro de seus ouvidos uma brisa sussurrada lhe provoca tremores. E se o impulso for apenas força de gênese e não inércia? A fumaça do cigarro hipnotiza a sacada e toma conta de todo o espaço em vácuo que separa a rua de seu prédio. As luzes hipnotizam sua medula como se os quatro feixes formassem uma mão acolhedora. Ela não pensa e apoia os dois pés no chão, olha mais uma vez pela janela posicionada do seu lado esquerdo. Seus braços trêmulos não conseguem diferenciar o que é alma e o que é corpo. Uma pequena gota salínica de suor exterioriza o medo que pulsa por entre cada artéria. Descompassado seu coração inerte não consegue atender a demanda de explosões elétricas que afloram por entre cada centímetro de epiderme e assim seu corpo grita em cada poro por uma liberdade aérea. Ela impulsiona o chão e suas retinas secas apenas conseguem refletir as imagens que vão ficando cada vez menores e posteriores, conforme seu corpo sobe em direção às luzes. O impulso funciona perfeitamente e seu corpo passa a centímetros da parede esquerda e com uma violência viral sua velocidade aumenta cada vez mais. Ela não estende as mãos, traz seus braços junto ao corpo como nos filmes de paraquedismo que assistira durante a vida toda. Seu corpo agora é mais leve que o ar pesado da metrópole e ela voa em direção as luzes. Cada rajada de venosa que o vento despeja pelos seus cabelos castanhos é agraciada com um sorriso aberto forçado pela violência do ar. Sua face agora molda ondulações que iniciam do canto de sua boca até suas têmporas. Seu voo é paralelo aos deuses e rente ao céu, seus olhos observam todas as molduras sobrepostas das antenas que cada vez mais parecem pontos escondidos pelo concreto sujo. Ela vira seu rosto na direção do horizonte quando o reflexo das luzes toca delicadamente sua camiseta, havia chegado. Nesse instante seu corpo paira sobre os quatro canhões de luz. O desenho do feixe único recobre todo seu corpo, formando um amálgama de cinco cores. Ela sente cada batimento acelerado e tenebroso libertar as células invadidas pela luminescência. Livre afinal, sua alma levita em cada doce nota orquestrada nas claves de sol de sua pele. Descrevendo piruetas modernas, ela se vê envolta em luz como se um útero acolhedor e brilhante a levasse de volta aos lugares mais seguros. Nesse instante o feixe único começa a dividir-se em quatro linhas e então dentro de seu peito algo acontece. A oitava costela começa um tilintar de pequenas erupções sonoras que produzem um lamento agudo metálico. Tremores regurgitam dentro de suas mãos fazendo com que seu corpo vagarosamente comece a ser tomado por espasmos cada vez mais fortes. Seus músculos tensos são eletricamente puxados em direções opostas e explodem em um grito agudo de dor. Cada vez mais forte, a onda de sons vulcânicos percorre agora todo seu plexo e de repente a luz transpassa seu corpo como lâmina afiada. Ela perde o controle e a luz torna-se soberana masmorra. O feixe que corta seu peito e vai estilhaçando suas vísceras vai aos poucos se dividindo. Ela consegue ver cada pedaço de pele sendo liquidificado e cortado em pequenas peças de um quebra cabeça disforme. Cada feixe de luz vai em direção aos seus braços e pernas. Durante o trajeto sua pele é rasgada e seu sangue aos poucos evapora em direção às nuvens arroxeadas. Inerte ela apenas aprecia seus músculos sendo descolados dos ossos que dissolvem por entre os reflexos. Quando atingem o maior grau de separação, as luzes mostram um desenho de um corpo de mulher esticado em quatro direções opostas. Rosa dos ventos emoldurada por artérias que insistem em pulsar os últimos centímetros de vida elástica retida no sereno que cai dentro dos olhos dela. Nesse instante os feixes começam a tracionar mais e mais seus tendões, que vão sendo sugados pela origem das luzes. Ela sente os fios viscerais passarem pelas bordas ósseas, formando alavancas que esticam sua pele ao máximo. Fio por fio, ligamento por ligamento seu corpo vai sendo pregado nos canhões abaixo. Acordada ela sente cada pressão e cada rajada de vento que a quer libertar desse martírio e deixar seu corpo levitar pelo ar, mas já é tarde demais e a cada tentativa de liberdade seu corpo é tracionado e a dor é lacerante. Seus olhos extrapolam o limite do crânio e são invadidos por um medo primal e servil, fazendo com que a pele que está sendo esticada em um nível máximo ao redor de suas órbitas, pressione uma glândula e assim uma gota lacrimosa de sangue cai em direção ao chão acinzentado. Um grito corta o ar da metrópole, suspirado por entre canais do coração que desacelera em um platô liso e dissecante. Ela percebe que está na verdade no chão de sua sala com suas mãos ainda calcificadas pelo medo. Nota a seringa que ainda repousa delicadamente em seu braço direito. O garrote faz com que as pontas de seus dedos permaneçam arroxeadas. Nesse instante a pressão em sua alma é tamanha que uma gota de sangue em lágrimas cai no chão da sala.