10 de dezembro de 2013

O Cristo Suicida

O suor era duro como argamassa amanhecida. Suas veias resvalavam em pequenas dobras de tecido, que, ao mesmo tempo inchavam e depois de milésimos e segundos tornavam-se planas. Não havia esperança em algum tipo de mudança estrutural, tanto dele quanto da parede onde se posicionava apertadamente. O medo também era ausente, não existia têmpora latejando muito menos algum aporte sanguíneo equivocado dentro de uma ou mais artérias, a paz era nervosa aos olhos de quem olhava à distância ou mais perto. As mãos firmes cobertas por marcas brancas das armas de corte, a pele endurecida como uma velha amadeirada mesa repleta de nós históricos. Os braços, que em qualquer outro ser humano nesse momento estariam trepidando e enlouquecidamente trêmulos, permaneciam rígidos, eufóricos e ausentes de emoção. Tudo era exato, planejado e nunca arriscado ao acaso. Aquela tarefa deveria ser matematicamente coloca em prática, pois a vida dependia disso, menos pela vontade de viver, mais pela obrigação de tentar. E o corpo estático. As únicas estruturas em movimento eram as mechas de cabelo avermelhado que pairavam em budismo laterais aos fios esbranquiçados. Uma orquestra em meio ao paralisado público, formada pelo resto do corpo parado e os transeuntes daquela avenida. Ele não sentia os olhos percorrendo sua estática, não sentia as vozes lhe chamando, não saberia diferenciar as cores ou as vestimentas suas nem de ninguém. Era como se o corpo estivesse ali inteiro, como um deus moreno com seus músculos reluzentes e rijos, mas sua alma já não estava nem ao menos no mesmo quilometro quadrado. Nada mais restava dentro dele uma vez mais. Outra vez esvaziou-se, tomou para si mesmo a capacidade do não mais sentir nada, esperou pacientemente e caminhou como já fizera milhares de vezes.

No vazio do vazio, vazio.

Mas não era isso mesmo que todos buscavam?

Ele sempre soubera disso desde os tempos onde as perguntas ficaram insuportáveis e as respostas ausentes, como nos tempos de seu pai bêbado. Aquele maldito jogador e esbanjador de dinheiro com todas as prostitutas sifilíticas da região central. O pai que abandonou a casa a feder como se fosse um chiqueiro podre, a casa onde ele permaneceu deitado durante horas depois da última surra, a casa onde sua mãe morreu decorrente das recorrentes infecções causadas pela horda de bactérias deixadas dentro de sua vagina seca e estuprada diariamente. A casa. Maldita casa onde descobriu a maldição, onde sentiu o primeiro orgasmo ao roçar as coxas maternas, onde vomitou a primeira vez depois da inicial tentativa frustrada em permanecer alcoolizado para sempre. A maldita casa dos horrores, onde as respostas tornaram-se insuportáveis e as respostas insuficientes. Enfim a casa, que nesse momento passava por sua cabeça também não o salvaria muito menos deixaria seu raciocínio mais claro.

Mas não era assim que os seres humanos funcionavam?

Uma geração de pessoas que tentam clarificar seus pensamentos, suas ideias, com mais ideias de outros, com mais informação de outros e mesmo assim não percebem que estão cada vez mais completamente perdidas, resolutas em permanecer em uma depressão intelectual guiada por conhecimento. Auto aprimoramento cotidiano deixando a alma em coma, o cartesianismo dos dias psicossomáticos onde a terapia de grupo é uma foto compartilhada ou um link egocêntrico ou abusivo. O vazio do vazio do vazio do vazio. Estruturas carcomidas de pensamento inerte, lambuzados por milhões de orgasmos virtuais das deusas entubadas em uma plana tela de dezoito polegadas, aguardando uma ereção que não terá maior duração do que cinco minutos. Penetrações calculadas por tempo, cortes exatos de cenas para que o esperma seja calculado em segundos. A precisão do espaço entre um boquete e uma chupada nos grandes lábios. A sincronia do posicionamento em roçar da cabeça do pau nos pequenos lábios e a penetração. O olhar para a câmera em terceira pessoa, a respiração ofegante calculada em milésimos de segundos e o grande clímax quando ela vagarosamente escorrega pelo plástico pau em três dimensões. Tudo é calculado para que o vazio não apareça. A felicidade em velocidade é uma das maiores invenções já criadas pelo homem. Vício automático e compartilhado por cento e quarenta caracteres não lidos e repassados como macacos em uma fábrica de apertar rolhas.

Nada sei, nada vejo, nada falo, apenas aperto.

Mas não era isso que os seres humanos buscavam?

Uma satisfação passageira que levasse possivelmente à morte. O pós modernismo anti niilista sem saber o que era o niilismo. O empacotar-se em metalizados invólucros que continham a mínima chance de matar todos os que se encontravam dentro deles. Penetrações sem camisinha e cruzeiros marítimos são duas maneiras indiretas de morrer, depois que o casco arrebenta em um iceberg ou barreira de corais, não existe salva vidas suficientes. Carros do ano, apartamentos com um quarto, estúdios com seus trinta e oito metros quadrados de solidão armada em concreto, metrôs, ônibus. Invólucros pré morte como as seringas, canudos, notas enroladas. Ele sempre soube disso, sempre soube desde quando as perguntas eram maioria e as respostas minoria ausente. Um apartheid de soluções e mais nada. Sempre foi assim desde o início dos tempos onde os pais humanos urravam por uma poça d’água suja, e agora, quando as pessoas urram ao pensarem ter razão no trânsito. O buscar a morte é a única coisa que todos fazem, por querer ou sem. Respirando-se mais fundo ou meditando embaixo de uma reciclável árvore em uma praça salva por uma confraria de comedores de soja.

Todos estão morrendo.

O problema é que ele não conseguia morrer. Desde a primeira vez que tentou o suicídio. Acordou exausto como se vivido tivesse uma experiência extra corpo. As roupas chamuscadas, a meia sintética colada em pedaços de seu tornozelo que exalava um aroma maldito de compensado molhado, o cheiro de gasolina correndo atrás de suas orelhas e a pela intacta. Cabelos completamente secos e o máximo que conseguira foi queimar alguns poucos fios que estavam por cair. O fogo ainda ardia pelo rastilho de combustível feito quando ele derramou um pequeno galão em seu corpo e que desencadeou um pequeno desastre ambiental no bueiro à esquerda. Porém ele continuou ali, vivo, respirando como um maldito sobrevivente desses programas do Discovery. Depois disso tentou outras incontáveis vezes. Debaixo de um trem, envenenar-se, tiro na cabeça, boca e na altura da vértebra cervical número dois (essa tentativa com um aval médico que dizia ser infalível), veneno de rato em doses homeopáticas e depois por frustração tomando dois frascos inteiros. Nada dava certo e ele sentia-se um pária dentro da sociedade. Como seria possível todo o mundo procurando a morte mesmo que inadvertidamente ou de propósito e ele não conseguia. Um pária, isso é o que ele era, uma aberração que nem ao menos morrer conseguia, destinado ao fracasso cartesiano do viver na direção do fim, como todos os outros seres humanos, porém sem chegar ao fim. E o pior é que nem ao menos era um daqueles personagens que povoam o imaginário erótico do mundo, como um vampiro por exemplo ou um boto rosa, mesmo que um boto rosa seja uma lenda mais local do que internacional. Mas isso não interessava, o fato era que ele jamais conseguira morrer. Todos ao seu redor definhando, a cada dia mais próximos da morte, felizes por viverem suas miseráveis vidas de consumo desenfreado e intelectualidade superficial, abraçando teorias conspiratórias pela internet ou masturbando-se com os canais sadomasoquistas de chuveiros dourados orientais. Mas ele não. Pois não conseguia morrer e sabia disso desde quando as perguntas se tornaram insuportáveis e as respostas mudas. Porém o pior aconteceu quando sozinho naquele beco escuro, próximo à linha do trem que parte no entroncamento Barra Funda, com a arma em punho apertando o fundo de sua garganta, como em uma grande cena de sexo oral autossômica, atirou na direção de sua massa encefálica. O estampido fora tão alto que antes de ser derrubado pelo tranco da pistola ouviu ao longe alguns cães uivando. Ele sentiu tudo. O calor do cano dentro de sua bochecha queimando a lateral da boca enquanto a bala saia em velocidade supersônica, o gosto de pólvora queimada e gases de combustão percorrendo a faringe seca. O estalido dos ossos no pescoço quando a bala atravessou sem nenhum traço de piedade o tecido, o dilacerar do tronco encefálico quando o projétil abriu uma avenida perimetral por entre as substância cinza e branca, o escorrer do sangue pela língua também queimada, indo na direção do estômago. Este, automaticamente ao ser atingido pelos restos de explosivo despejou quantidades tsunâmicas de ácido clorídrico dentro da mucosa, que rangeu os dentes e urrou de dor. Sentiu o buraco com as pontas dos dedos, aberto pela bala que espalhou tecido cerebral pelo muro da passarela e escorreu vagarosamente pelo lado de fora, acertando de passagem a estrutura metálica da linha de transmissão e a carroceria de um trem a passar pelo viaduto no momento do tiro. Ele sentiu tudo, até o momento em que o céu tornou-se negro e seus olhos despencaram pelo corrimão dos braços. Acordou meia hora depois cercados de moradores de rua e de duas senhoras que o levantaram e ajudaram a espalhar o boato do rapaz que era a encarnação de Jesus Cristo. Abençoado milagreiro que tinha o poder de ressuscitar após dar um tiro em sua própria cara e com o nariz repleto de cocaína para que tivesse coragem de fazer esse ato divino. As duas senhoras que atestaram depois em vários telejornais e na matéria publicada por aquele jornalista, que ele após algum tempo de convivência entendeu o que queria de verdade, os seis milagres feitos em moradores de rua que presenciaram a cena do suicídio santo. As duas senhoras que tornaram-se vinte, depois sessenta, depois duzentos e cinquenta, depois mil e trezentas, depois seis milhões e meio de seguidores no twitter e mais de três mil páginas no facebook. Ele jamais conseguira morrer, porém era um homem santo, venerado e adorado por cartéis políticos e padres pedófilos que pediam absolvição com um pau latejando de esperma infantil.

A reencarnação de Jesus Cristo, Alá vivo, Maomé profetizado, ele era tudo, menos um homem capaz de decidir sua própria morte. Mas ele tinha que tentar, ainda mais agora, ainda mais por ela, ainda mais pelos dois. Ele tinha que morrer. A parede que o segurava por mínimos dedos já raspava suas costas e sentiu os minutos cortando sua alma. Era chegada a hora.

Seus pensamentos apenas pulsavam o nome, desde o dia em que ela o tocou como se fosse apenas um homem comum, quando ela sentiu sua ereção e o olhou com a ternura de quem descobre humanidade em um cachorro pestilento. Ela sempre foi tudo aquilo que ele queria e se existia uma razão para morrer, não haveria nada no mundo que se comparasse aos lábios dela. A multidão de adoradores olhava para cima e gritava cada vez mais alto para ele pular e fazer mais uma série de milagres suicidas. Ele não os ouve. Sente o vento frio correr suas entranhas e por instantes infinitos ensurdece. Ergue as mãos e manda todos irem embora, mas o povo não move um músculo sequer e grita aos pulmões em lava:
- Cristo, Cristo, Cristo, morrei por nós mais uma vez, olê, olê, olê.

Ele não ouve, não quer ouvir, quer parir um elefante de infinitas toneladas e arremessar de encontro à multidão e matá-los. Odeia todos eles, mas não consegue esquecê-la. Não consegue definir como seus beijos o afetam de maneira singular e como cada abraço parece ser o último. Por isso ele precisa ignorar todos em sua volta e morrer de uma vez por todas. Respira, toma impulso e cai. O corpo descreve uma trajetória retilínea em sua saída do parapeito, o concreto semi velho do prédio com seus dezoito andares de especulação imobiliária resmunga, enquanto o vento do corpo inerte passa por entre suas rugas. Seu corpo desloca-se em velocidade crescente e as mãos já não mais suam, apenas ecoam o ar que grita por entre os nós dos dedos. Ele sorri, cai, despenca para ela, pensa nos seios grandes com os bicos marrons e duros da saliva dele. Ele vai morrer, tem certeza. A multidão grita, clama sua alma eterna, algumas beatas masturbam-se por debaixo das batinas e ele está cada vez mais rápido. A trajetória perfeita dentro de uma linha reta sem encostar nenhum músculo ou pedaço de pele na parede. Ele sorri quando finalmente percebe a aproximação da grade com flechas nas pontas. Vai mudar de trajetória para poder cair com o corpo pela metade nelas e ter seu tronco separado das pernas, assim nada mais poderá ser feito, a maldita lenda morrerá e ele conseguirá apenas ser o que sempre quis. Um ser humano medíocre como todos. Que viveu para morrer também, e, dessa vez conseguiu. O corpo ainda cai, a velocidade cresce geometricamente, a multidão grita, grita e grita até sangrar as narinas, clama salvação, acendem velas, rezam com terços de madeira cravados entre peitos murchos, pedem mais um milagre ao Cristo suicida pela incapacidade em ter uma ereção, mandam beijos no ar para o corpo que cai e depois beijam com a mão seus murchos paus. Ele não pensa em nada disso, vai morrer e ele sabe. Sabe desde o dia em que as perguntas ficaram mais firmes e as respostas mais disformes.

Atenção senhoras e senhores nosso salvador crucificado ao vivo, não percam mais esse milagre, um oferecimento de computadores Asus, a salvação de seu software e Omo dupla ação, logo após a trama gelatinosa de sua novela das nove. Corta para a vinheta e coloca a tarja preta no momento em que ele despregar o tronco das pernas. Corta e depois mostra o corpo ressuscitado com a legenda nosso Cristo é imortal com a hashtag chupa Bispo Macedo.

Mas ele não quer saber de nada disso, está caindo e vai morrer. Sente a flecha de metal encostar na primeira célula epidérmica, partir a primeira ligação de colágeno, percebe o romper das arteríolas terminais e o iniciar pequenos hematomas intradérmicos na segunda camada da pele. A flecha rompe seus músculos paravertebrais, principalmente algumas fibras mais encurtadas do grande dorsal que lhe causam dores mais agudas, percebe que o rim direito já foi atingido quando a hemorragia imediatamente chega ao seu pênis, a pressão sanguínea eclode como lava e a seta metálica rompe seus músculos abdominais retos trazendo pedaços das alças intestinais ainda um pouco sujas. As vísceras espalham-se com o impacto e atingem os rostos de alguns crentes que em êxtase pedem perdão dos pecados. Ele não quer saber, apenas sabe que nesse minuto seu corpo foi esquartejado e ele vai morrer. Sorri então desaforado mostrando o dedo do meio para o operador de câmera, que enquanto filma chora. Os restos dos tecidos humanos, esfacelam-se pelo concreto e pela grade como provas de um bombardeio terrorista. Ele sente a morte chegar finalmente, fecha os olhos e com um sorriso largo diz fodam-se todos vocês.

Exatos quarenta minutos depois ele sente o beijo dela e imagina que chegou ao paraíso, involuntariamente seus olhos abrem-se. Alucinando percebe que seu tronco fora costurados pelos fiéis e ao seu redor ergueu-se um altar repleto de celulares e todos os tipos de pads, seu corpo envolto em vestes brancas, um fio de cobre fazia às vezes dos pontos em sua barriga. O povo urrava viva o milagre de Cristo suicida. Ele estava vivo ainda e ela cada vez mais longe.

Ele sabia disso e sempre soube.