O cálculo deveria ser impecável, não existe nem acolá nem entretanto que justifique um recuo. Tudo aquele dia havia levado lhe ao tracejado gráfico deste momento. A sequência era clara: primeiro encostaria as duas escápulas a serem separadas pela linha média da porta, flexionaria em, pelo menos, setenta e cinco graus o joelho para que desse modo o ângulo favorecesse a pressão do corpo sobre a madeira com maior segurança, depois, aumentaria o vetor apoiando a linha anterior do triângulo de sustentação do pé na borda da cerâmica e colocaria um pouco de joulestenia em seus músculos tibiais. Longe dos ouvidos era possível perceber um agudo rotacional percutindo o ar.
Visto que a biomecânica do quadril e pernas estava acertada, era hora de separar os trapezistas sem rede dos malabares com duas bolinhas de tênis. O copo de plástico, que se encontrava cheio, seria colocado na borda da boca e esta sustentaria o recipiente sem derramamento de líquido, enquanto sua mão esquerda alcançaria o frasco fechado ao mesmo tempo em que a direita empregaria menor esforço para recolher de seu bolso o pedaço de pano ainda vivo. O som ao longe tiquetaqueia mais perto, parecendo estar menos de duas corridas velocistas de distância. Impressionante mesmo é perceber que a largura dele elasticamente perseverou maiores tons. Sentiu um pequeno tremor em suas mãos, contudo erros não poderiam ser permitidos dentro do cubículo de trabalho, mesmo com aquele sonido. Movimentos de antecipação completos, restava agora jogar o osso para cima, esperar sua circulação em voltas até o espaço, para o abraçar em forma de nave espacial povoando de tecnologia aquele ato da peça.
Frasco sem tampa, pois cambaleava entre o indicador e médio, embalado no berço construído pelo polegar, permanece dormindo em salivar, o som do lado de fora desenha enfim seu tamanho em ferro, rotores e motores, que claramente evidenciam a presença de um helicóptero. Sobrevoando baixíssimo de hélices asssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssssoviando pelos passantes do lado de fora. O pano então prestidigita uma queda e repousa na boca vítrea, o que conclui com sucesso todo o truque. Ouviu então um grito de socorro, uma voz ecoando frase complexa e desconexa sobre a hélice da aeronave ter decapitado uma pessoa, mas não só. Outra oralidade em pânico descreve aos berros a perda de duas pernas, mais uma frase, mais dois braços e um peito dilacerados. Mas já é tarde e o palco não espera e a nova receita deve ser aspirada sem pressa. Então a porta o abraça, carinhando a maçaneta de algodão-doce em suas orelhas, ele sente uma língua de azulejos tocar seus lábios. Esquece o triângulo de sustentação do pé, prefere o longo beijo cerâmico de Itatiaia. Abre os olhos e a vê, poderosa deusa mitológica que conduziu as amazonas de Madagascar, aquela ilha de amor. Não há mais corpo, não há mais ele, apenas um caleidoscópio de madeira onde músculos e serragem correm pelas mesmas veias. Tudo interrompido pelo pânico das ruas que invade a cabine. O cheiro do massacre entra pelo seu nariz e ele já não consegue permanecer ali. Precisa sair, ajudar aquelas pessoas mortas e salvar os feridos. Abre a porta, mas não consegue andar. O sangue civil pelas ventas e orifícios do asfalto são só finalizados quando o helicóptero bate contra um muro que usava bermuda preta e uma camiseta da banda Radiohead.
“Marcos, caraleo, fecha esses braços e para de girar, você está batendo em todo mundo”.
Ao longe um Fusca reverbera Olodum tocando Madagascar.