19 de julho de 2016

A Mão Esquerda

08h15min PM

Poderiam ser aliterações e mais considerações, atrasos em descrições e milhares de palavras metafóricas, porém era apenas calçamento. Carcomido por entre os dias e pancadas de chuva daquele maio, mantendo inerte em movimento quem passava, unindo-se aos cantos das paredes de outrora novos prédios. Sem existência de separação aparente por entre as arestas, não havia coloração entre os espaços deixados pelas nuvens mais baixas. Apenas existia o caminho por onde as almofadas de suas patas passavam, mesmo porque, sua visão de mundo era limitada à paleta simples de primárias cores, além disso, seria caleidoscópio de preto e branco. Mas essa ligeira falta de virtude oftálmica nunca impediu Fonseca de caminhar. Era inerente ao comportamento, seu instinto mais básico era apenas seguir.
Cheirar e seguir. Nada importava.
A não ser os pequenos obstáculos sobrepostos por entre o calçamento. Uma pequena poça, um poste ou uma árvore deslocando suas raízes acima da superfície, debatendo seu espaço com os restos dos ladrilhos das calçadas ou até uma desavisada sacola de passante a atravessar seu caminho naquela noite. Curiosidade segura por uma guia avermelhada e a mochila xadrez onde seus donos levavam acepipes a apetrechos. O ar levemente frio noturno rebatendo as nuances cruas da carne nos espetos de madeira, as vozes ressoando alto das crianças ou as buzinas ecoando terremotos automotores. Entretanto nada parecia abalar a confiança daquele boxer branco de um ano e meio. Seguia do mesmo jeito que o concreto era apenas concreto, do mesmo jeito que o asfalto era apenas asfalto. Caminhava pata após pata, cheiro após cheiro, de quando em quando olhando no rosto de seus donos. A cidade rugia, mas nada disso importava. Uma simbiose entre o casal de namorados e seu cão jamais parada seria naquela noite. A língua em desabalada salivação no canto esquerdo da boca, o arfar da homeostase pulmonar no branco canino e os passos. E era de se admirar como aqueles três seres tinham passos tão determinados. Como samurais malandros, sem a desabalada carreira dos que correm atrás de seus cachorros. Uma poderosa horda de andarilhos da metrópole, sem a menor possibilidade de tornarem-se estacionários. Entretanto, uma voz na fronteira entre o amargo e o senil atravessa seus ouvidos médios, rasgando a tranquilidade como uma navalha oxidada e sem corte através de um pedaço de tecido branco:
- Nossa, que cachorro bonitão!

10h19min PM

-Eu não acredito!?
O tom de reprovação que agora repousa por entre suas sinapses lhe parece de uma familiaridade doentia. Mas ela estava certa, não podia negar que pela lógica do mundo seu ato estragara uma bela noite. Iam tempos longos desde que saíram juntos com o cachorro. Fonseca, o boxer, olhava sem entender o que significavam aqueles grunhidos tão carregados de remorso e ódio, desferidos pelos dois humanos. Para ele, a sensação do calor nos corpos dos donos exalando aromas conhecidos por ruas escuras era a felicidade última dentro de sua vida.
Seria algo que ele fizera?
Porém se assim fosse, as lindas sobrancelhas de sua dona reprovariam suas ações diretamente em suas retinas, e não nas de seu dono. Os dois vestidos com agasalhos, ele preto e o dela vinho, com suas calças jeans surradas de passeio público e as mãos a conter uma simetria que espantava até quem os conhecia pela primeira vez. Nessa noite entretanto suas alturas que normalmente eram equivalentes, separavam uma mulher em fúria e um menino desolado em seu tropeço mais agudo. O cão assenta-se em suas patas traseiras e observa a feição de seu dono corar em público. Fonseca não saberia diferenciar aquela cor de sua guia, nem ao menos se os dois fossem dispostos em paralelo. O silêncio do erro adormece a tentativa cândida do beijo reconciliador, estremece a repulsa da pele um do outro. Fonseca apenas sente que algo não está certo naquele quadro. Olha, deixa sua cabeça pender para o lado direito, como sempre faz quando quer acertar o foco das coisas que vê ou ouve, mas nada parece acertar aquela situação.
Seria hora de pular no colo deles?
De rolar envolto em algum truque aprendido?
Confuso o boxer apenas espera, entretanto, as palavras de seus donos soam e ressoam cada vez mais tensas. O cão apenas espera como sempre esperou. Como sempre esperou muitas vezes desde que nasceu. Quando o dono do canil o arrancou de sua mãe e deixou-o sem forças no frio litorâneo, como esperou nos dias onde sua vida por um fio estava naquela mesa de cirurgia ou quando seus donos o deixaram no hotel para cães, onde sofreu dezenas de queimaduras pelo desleixo dos tratadores. Como sempre esperou, Fonseca espera novamente. Estático e paciente, um monge ensaiando o sorriso reconciliador.
- Me desculpa, eu volto correndo pra casa e vocês esperam aqui. Volto logo, antes das dez e meia.
Os solavancos das cordas vocais dele enchem o ar de arrependimento.
- Toma conta da mamãe Fonseca.
Ao sair o dono só conseguia pensar o quanto sua autoconfiança não lhe serviria de nada no caminho de volta para casa. Mas não poderia perder mais tempo, afinal de contas a loja para cães fecharia às dez e meia e o cachorro ainda não comera e poderia nem comer se ele não conseguisse voltar a tempo de comprar a ração especial para o intestino. Ele apenas escuta o fungar de Fonseca, ligeiramente entediado por mais uma vez falhar na sua tarefa de manter seus donos juntos. Mas o boxer não sabe das nuances econômicas nem dos relacionamentos entre humanos, ele sente tudo incondicionalmente intenso, e, naquele momento, apenas olha para sua dona como se dissesse que tudo ia acabar bem, porque eles eram as melhores coisas que poderiam ter acontecido na vida de um cachorro. E mesmo sem saber, Fonseca, além do amor que sentiam um pelo outro, era a melhor coisa na vida deles.
Aquela noite serviria como prova.

09h13min PM

- Você não achou meio estranho, aquele senhor falar que tem o boxer dele desde os dois meses? Pergunta pertinente, afinal de contas o desmame de um filhote ocorre algum tempo depois.
- Definitivamente achei estranho, porque como é que o filhote terminou de mamar então? Ela respondia confirmando as suspeitas de que aquele senhor não era um apreciador da raça.
- O que você acha Fonseca? Ao ser chamado, como sempre fazia, o cão virou-se para eles. Um pouco ressabiado ainda, afinal de contas, o que seus donos queriam com ele já que pelo seu entendimento a opinião ou ações dele não importavam. Ou o que era pior, os humanos sequer agiram de outra forma por causa de sua investida certeira. Preferiram continuar conversando enquanto atravessavam o calçamento e o asfalto. O cão não conseguia expressar sua vontade com palavras, mas se pudesse diria que seus donos deveriam prestar mais atenção em seus atos, principalmente naquele momento em especial do passeio, porque ele precisava achar um bom lugar para fazer suas necessidades.

Para Fonseca o que acontecera alguns minutos atrás já não mais interessava. Sua vida era recoberta de segundos mais rápidos do que o calendário humano e ele sentia o tempo como uma rajada do vento no outono. Ligeiro e com velocidade constante, que, chegando de repente, não pode ser interrompido muito menos domado. O tempo para o cão era uma comodidade que não existia. Sentir o tiquetaquear das horas, minutos e segundos era impossível, pois o boxer era apenas intensos sentimentos e a vida dele era muito mais grandiosa do que algo encarcerado dentro de um relógio.
- Mas também namorada, o cara me pareceu um pouco bêbado.
- Não achei que estava bêbado não. Eu achei que ele estava mentindo apenas para puxar assunto.
- Verdade, pode ser mesmo.
Enquanto eles decidiam se aquele senhor tinha passado por tantas aflições, Fonseca levantava sua pata esquerda e aliviava-se. Olhando para seus dois donos apenas, nada mais. Ele sabia que mais cedo ou mais tarde os dois entenderiam.
- O que mais me deixou com vergonha, foi o Fonseca tentando pegar a marmita do homem. Completa a namorada. - Aliás, é muito estranho isso, porque eu já vi ele tentar pegar bolsas e brincar com vestidos das pessoas que estavam passando, mas nunca o vi tentar comer alguma coisa de alguém.
- Verdade Amanda, estranho isso. - Estava com fome Fonseca?
O cão apenas funga e espera.

08h35min PM

Andava, sentia o asfalto correndo debaixo de suas patas. Relaxado com as orelhas para trás não se preocupava com nada, a não ser um possível encontro com os meninos que viviam jogando bola na esquina. Mas isso também não importava. Muito menos aquele convidativo vaso de árvore. Queria mesmo continuar andando, pata por pata, passo depois de passo. Seus instintos o deixavam tranquilo, porém alerta aos acontecimentos que rodeavam o canto de seus olhos e narinas. O casal continuava a caminhar ao seu lado. Até que a guia avermelhada começa a ganhar um pouco mais de tensão. Fonseca parece diminuir o ritmo, mas a avermelhada fita ainda não estava tensionada em sua totalidade. Quando os segundos desse ato pareciam chegar ao fim, o boxer dá uma guinada para o lado esquerdo tão rapidamente, que seu dono quase tem o ombro deslocado. Como se avistasse uma presa, o cão avança. Mas quem iria acreditar que estava caçando?
Algo morto por milhares de lambidas. O dono tenta corrigir, porém trinta e dois quilos de músculos não deixam. Impassível o cão tenta desvencilhar-se da guia. Pula, e vira-se definitivamente para trás. É um homem que passa ao lado deles. O casal então solta a guia, porque sabem que seu cachorro adora brincar com as pessoas. Porém, o dono tenta corrigir o cão em sua tentativa de escalada pelo alto corpo daquele homem.
- Nossa, que cachorro bonitão, eu tinha um desses, mas morreu faz tempo. - Criei ele desde os dois meses de idade, chamava Buda, mas era caramelo. - Esse é lindo mesmo hein!
A voz entre a navalha e o amargo corta o ar. Ele era um senhor que não passava dos 50 anos. Uma camisa social abotoada milimetricamente até seu pescoço e seu olhar desviando-se de cada baforada de ar frio que poderia levá-lo ao encontro dos olhos daquele casal e seu boxer branco. As pernas altas e o tronco longilíneo mostravam uma imponência diante da vida, que o marcara em cada cicatriz de seu rosto. Ele não parava enquanto pronunciava as frases de espanto e afeição. Como o casal e seu cachorro, parecia ter tudo sob controle. Sabia o que fazia e para onde ia.
- Obrigado. O casal quase que ao mesmo tempo reduz uma reposta que tomaria séculos de contentamento se fossem explicar o que se passara com o mascote do momento de sua chegada, até o espaço de felicidade que estavam.
- Isso é uma marmita. O homem então respondia a pergunta que ninguém fez, pois Fonseca iniciava uma farejada minuciosa em sua mão esquerda. - Ele é lindo mesmo, vem cá menino vem cá brincar, você gostou da minha marmita, não é verdade? Dizia o passante ao tentar manter sua mão esquerda no alto, enquanto Fonseca tentava a todo custo alcançá-la. Pulando e arfando. Seu dono tenta corrigir, sua dona diz não com mais rispidez, porém o boxer branco é metódico o suficiente para ser implacável. Pula, arfa e tenta agarrar a mão do homem desenhando ângulos de biomecânica complexa, vértices de quadriláteros em fechadas curvas com sua coluna elástica, patas cortando o ar em um acorde de mandíbula estridente, percutindo levemente nas bordas da camisa desse anônimo cidadão que ao ser atingido por uma das enormes espadas manuais titubeia e quase cai, mas rapidamente concentrasse e se mantém em pé.
- Fonseca não! A dona repete.
- Não tem problema eles são assim mesmo. Repete o homem.
Canino então tenta mais uma vez, e dessa será definitiva. Ele avança em direção à mão esquerda. Na primeira tentativa quase abocanha, e só não o faz, porque seu dono dá um puxão forte na guia. Frustrado com a tentativa de dominação, o cão avança, latindo em um soneto mórbido de insanidade, estridente como um guarda do inferno repleto de ódio e sangue em suas narinas.
- Fonseca, chega, chega, sentado. A ordem do dono corado de vergonha pelo mau comportamento do cão ressoa seguido do pedido de desculpas.
-Não tem problema, eles são assim mesmo. O homem então se afasta e segue seu caminho, deixando o cachorro com os olhos inundados em quase raiva. Fonseca então novamente se senta, para e olha para seus donos. A marmita na mão esquerda parece cada vez mais longe e o olhar do boxer cada vez mais desolado.

10h26min PM

A sorte do rapaz é que a casa deles ficava relativamente perto da loja de animais e seu caminho seria feito em tempo hábil. A vergonha de seu erro ainda corroía seu estômago e a acidez fluía inadvertidamente pelo seu corpo. Em sua cabeça nada encaixava. Ele saíra de casa com tudo na mochila, todos os apetrechos. Os preparativos para a passagem pela loja foram todos minuciosamente programados e estava tudo em seu lugar. No caminho solitário de volta para a casa, ele vasculhou por todos os pedaços de chão que poderia procurar. Refez todo o caminho do passeio e nada encontrou. O que poderia ter acontecido?
Ele só deu conta de que alguma coisa faltava, quando já estavam no interior da loja. Sozinho ele novamente olha para chão enquanto retorna aos braços de sua amada nervosa e seu fiel escudeiro de tropeções, Fonseca. Um raio bate em sua cabeça sem avisar.
Em voz alta ele exclama:
- Eu coloquei o...
Não consegue terminar a frase. O espanto prende sua respiração e ele sente seu corpo todo estremecer, mais pelo baque invadindo seu cérebro ao descobrir alguma coisa que parecia impossível, menos pela sensação tátil que naquele instante ocorria nas pontas de seus dedos. O bolso atrás em sua calça estava furado.

11h00min PM

Fonseca naquele instante experimentava a sensação de felicidade mais intensa na sua vida. Pelo menos até que o último segundo acabasse, depois disso, seria outra sensação inigualável e assim sucessivamente. Corria atrás de sua bola predileta pela garagem. Gostava de apoiar-se nas pernas de seus donos, e, quando ouvia a palavra certa na entonação apropriada, tomava impulso nas tíbias desavisadas. Foguete branco com pintinhas pretas enlaçadas, assim era a noite do boxer. Uma sucessão de bolas lançadas até o desabar final de sua barriga no chão frio. Feliz corre, sente a língua molhada bater em seu focinho. Morreria ali de felicidade completa se assim fosse necessário. Porém o cão trapezista de coração, não irá.
Anos muitos ainda seriam necessários para que a brincadeira da garagem chegasse ao fim. Fonseca os tinha em suas patas e não os deixaria escapar. Ele não se importava o quanto iriam durar, apenas faria com que fossem eternos em sua vida finita. Ele corria então cada vez com mais vontade e força. Mas se pudesse, além de tudo, diferenciar os fonemas humanos, descobriria que sua dona perdoou a falha de seu dono e que entenderam como perderam a quantia de cem reais do bolso rasgado da calça. Como sempre, a dona entendeu tudo primeiro:
- Olha só namorado, o cara viu que o bolso da sua calça estava rasgado e que a nota estava saindo dele, foi chegando bem devagar e aos poucos alcançou o dinheiro, a rua estava movimentada e nós não prestamos atenção no que acontecia atrás da gente, ele arriscou.
O cão chega do lado deles com a bola repleta em saliva canina e espera enquanto Amanda continua:
- Mas o Fonseca sentiu um cheiro diferente, virou e viu o senhor tocando na sua calça, ele não quis brincar com o homem, ele queria morder a mão esquerda dele porque era nela que ele escondeu a nota de cem. - Para o Fonseca o homem estava atacando a matilha, e ele, protegendo-a.
- Isso bate mesmo com o comportamento dele, ele viu o cara pegando o dinheiro, o homem tentou disfarçar, mas o Fonseca sabia da verdade, não queria comer a marmita e sim queria mostrar pra gente o que ele tirou do meu bolso e que estava naquela mão.
- E se pensarmos bem. Pondera a namorada. - Ele salvou a gente de alguma coisa pior, vai que o cara tenta fazer outra coisa.
Fonseca solta a bola de sua boca. Seus olhos parecem ligar-se de maneira visceral ao coração de seus dois donos. O sorriso deles denuncia que o cão estava certo e ele sabe disso. Como se fosse capaz de identificar os fonemas e entender as palavras pula diretamente no colo dos humanos e os lambe sem parar. A impressão é de que nesse momento ele sorri um sorriso muito mais de satisfação, por perceber que a alma deles entendeu suas ações, do que por pura e simples arrelia. Não existe medida ou metragem capaz de mensurar o que ocorre dentro de células caninas nesses momentos chaves dentro de sua existência. Nem existirão métricas germinativas de pensamento ou formulações físicas capazes de entender o processo de criação da convenção chamada vida. O contato entre a pele branca, morena e os pelos brancos de um focinho indomável, a medida sem exaustão de toques, sensações e anseio pelo encontro no final de um dia qualquer. São pequenos fonemas distribuídos por escalas musicais inaudíveis dentro do correr veloz dos dias. Contrações em encurtamento de miosina e actina, dentro de um músculo estriado pulsante, onde suas cavidades necessitam do preenchimento para viverem. Preenchimento que ocorre ali, produzido por aqueles três seres inteiros em suas imperfeições, ligando-se através da elétrica felicidade a percorrer o chão frio de uma cidade. A vida que por sua natureza incerta cria talhos incertos aos humanos, matreira dessa vez, produziu uma ligação de entrecantos tão poderosa quanto inquebrável.

FIM...