Desabou no limite do calçamento.
Talvez por ter pouco espaço entre seu rosto e o meio-fio não conseguiu deslisar o corpo na direção dos trilhos da linha férrea, como costumava fazer nos dias onde percorria o trajeto da escola estadual até sua casa a pé. Ali, por entre os novelos matagais existiam três portais onde a eletricidade do escapar da cidade os atravessava várias vezes ao dia, vestidos por uma dúzia ou mais de vagões marcados com o logo da empresa ferroviária. Aquele dia contudo, não havia espaço. Sentiu as mãos rasparem asfalto abafando a queda, ouviu sangue escapando pelas rachaduras da pele, descendo pelo corredor de água na beirada da calçada. Baforou arremedo imagético das comportas na estação de tratamento d’água, instalada ao lado do campo de futebol de várzea, onde foi goleiro residente na cratera de lama, com seus óculos caindo enquanto o time adversário renegava um sossego. Ocasião onde o mesmo menino lhe deu uma mesma rasteira, exatamente igual hoje. Na lama, ouviu as águas da comporta. No asfalto ouviu seu sangue percorrer a Orlando Moretto. Rua inclinada da mesma forma que o viaduto, onde troncos da construção formavam malabares e plataformas que sobrevoavam a linha férrea, territórios para batalhas de trapezitas espiões filmadas por seus óculos grande oculares, enquanto o maquinista alumiava toda vegetação das encostas. Inclinada, como a cama do quarto onde ela dormia com o marido. A água na beirada da calçada corria-lhe os arranhões, o jato do chuveiro compunha bailados pelas escápulas desenhadas em ângulo reto das costas fechando as cortinas em suas mãos afastando as coxas hipertônicas daquela mulher. Passou a mão esfolada pela boca e sentiu o gosto da terra da rua Orlando Moretto em seus lábios ao tentar levantar-se. Memorizou aquele gosto dela de rebordo doce, o cedro que sorvia sua língua percorrendo a pele casada e por fim o enroscar dos pelos em seus dentes. Ao levantar-se, passou pelo menino que lhe derrubara. Não revidou, pois o congelado tempo permitiu que levitasse suspenso por um shibari, mesmo que no dia do seu espancamento por sete quarteirões o resgatou. Idêntico ao que levou-lhe a porta da casa dela, esperando seu marido e filho viajarem, para que pudessem viver nus durante uma vida inteira de oito horas. Perfeitamente iguais as que balançavam nas madeiras da construção do viaduto, que ao atritarem na estrutura, esfumaçavam-se. A memória do atrito nas paredes úmidas dela deslizando seus dedos esfolados no calçamento da rua Orlando Moretto, lembravam que a vida era pulso daquela língua valsando-o. Era essa memória que tentava sustentar por entre a fumaça da última pedra de crack queimando nas cinzas naquela lata de refrigerante, ecoando os carros na Avenida Nove de Julho, inclinada tal qual a rua Orlando Moretto.