15 de maio de 2024

,

Synapses

 Já me pusera apreensiva antes mesmo de bater à porta, tudo isso por conta de uma história que nem ao certo sei ser verdadeira sobre como este específico chefe simplesmente esganou um de seus estagiários após severa crise, onde o resultado externo fora O Corpo cercado por seis policiais que tencionaram a possibilidade dele ter matado alguém dentro do seu apartamento, devido aos gritos ouvidos do lado de fora, que no final das contas eram Do Corpo mesmo. Recontei por seis vezes os azulejos azuis que cobriam a parede da entrada do departamento, fazendo questão de também enumerar todas as flores delicadas que os adornavam. Minhas mãos suadas por demais, quase nem conseguem abrir a maçaneta quando o berro do chefe mandou-me entrar. Enquanto caminhava pela sala completamente escura, uma voz forçosamente massificada, rouca e falha me recebe.


“Bom dia estagiária Synapse Modular Dexa. Bem vinda a Alphaville, megalópole cosmopolita planejada e regida pelo computador central Alpha 60 e suas regências…”. A frase não se completa pois uma risada solitária ecoa pelos cantos enquanto entrei vagarosamente fechando os olhos em suspiro pensando como é que fui parar com um homem que se pensa engraçado. “Meu Deus estagiária, bem vinda, eu não consigo parar de fazer isso com todos vocês, mas vocês dessa geração nova, deve ser pelo sono, não conseguem ter senso de humor”.


“Bom dia senhor…”.

“Senhor ACTH, SENHOR ACTH”.

“Me desculpe, senhor acth”.

“Já sei que você é daquelas me too”.

“Como, senhor?”.

“Nada, vem logo aqui!”.

“Mas a sala toda está escura”.

“Dá o primeiro passo, por favor….senhorite”.


Já tomada de horror trabalhista, ao caminhar em frente uma luz acendeu-se em meu macacão. Iluminando a sala, visto que a luz era bem ampla, pude ver com mais detalhes, o lugar tomado de painéis separados em sequências que obedeciam uma numeração e cada número, em ordem crescente, era desenhado com uma única fonte, e estabeleciam relações matemáticas entre si. Por exemplo, a sequência intitulada “Preparação do café da manhã”, terminava no botão de número 18496 intitulado “Colocando a caneca de café com a mão esquerda na mesa, deixando a alça do lado de fora”, ligando-se ao 136 da sequência “Banho”, onde se lia “Lavando o primeiro metatarso da mão esquerda”. Tudo isso disposto em duas fileiras de painéis que tomavam conta da sala. Havia espaço para circulação pela sala, e só. Chamou-me atenção um botão enorme vermelho cercado por uma caixa de acrílico, com os dizeres escritos em um pedaço de esparadrapo logo abaixo, “Black Sabbath”.


“Bom, como você já percebeu estagiária, estamos ainda em momentos antes da luz adentrar a sala. Isso deve ocorrer assim que a primeira pálpebra abrir, em exatos doze minutos quando esse medidor aqui escritor ”Sonho” zerar a contagem. Quero já deixar claro o seguinte: tudo aqui segue uma ordem específica e essa ordem deve ser seguida de maneira perfeita. Não há espaço para manobra, muito menos para jeitinho. O Corpo depende da nossa eficiência para que aquele botão jamais seja acionado. Por isso, desde já siga estritamente minhas ordens e permaneça atenta aos tempos exatos do acionamento dos botões sequenciais. Deles depende tudo, ainda mais hoje, que temos um novo evento”.


“Novo?”.


“Sim, hoje na aula da pós-graduação, O Corpo terá que apresentar um texto. Como ele não o escreveu ainda e temos pelo menos mais oito horas de eventos que ocorrerão ao longo do dia, e estes pedem uma sequência exata de ações, todo cuidado é pouco. Com calma e sem nenhum tipo de chilique de estagiária, tudo deve correr bem”.


Eu só pensava como ia ser lindo o processo trabalhista, era a única coisa que me fazia continuar ali.


“Pois bem, como é que é… Synapse Dexa, vamos lá. Repassando: Primeiro o café da manhã depois, por favor atenha-se especificamente ao passeio com o cachorro, pois este está velhinho e há uma sequência lógica de passos dados pelo Corpo quando o cão tropeça. Há e não esqueça de apertar esse botão azulado aqui de procedimento novo, o sinal da cruz”.

“Sinal da cruz, senhor acth, mas O Corpo não é ateu?”.

“Esse departamento não discute isso, apenas criamos as sequências lógicas que devem ser seguidas para que não ocorra a morte do indivíduo”. Voltando, depois disso os atendimentos e sempre todos em ordem alfabética, lembre-se sempre entre procedimentos, existe aquela sequência mais gasta, por ser usada com mais frequência, chamada “Lavando as Mãos”. Primordial para que tudo corra bem. No treinamento você recebeu todo o procedimento das refeições e da escovação de dentes. Lembrar que, o fio dental deve começar pelo lado esquerdo superior da boca, e passar sempre em números ímpares pelos vãos dos dentes. Jamais me aperte esse botão em vezes pares, pois o procedimento tem que se reiniciado e já tivemos problemas de gengivites por sangramentos”.

“Sim senhor”.

“O dia deve ocorrer sem maiores problemas, visto que as sequências estão muito bem equacionadas, meu temor é quando ele começar a escrever a tarefa. Veja bem, é método, então O Corpo vai tentar, mesmo com um rascunho feito, fazer algo fora dos padrões, pois temos um problema sério de sabotagem dentro da empresa e já há uns anos temos que lidar com ataques terroristas. Eles surgem do nada em grupos pequenos de sinapses, com uns macacões coloridos, jogando tinta explosiva em todas as salas do departamento. Se chamam V.I.D.A.S.. E mesmo com anos de emprego, eu jamais vi grupo tão coeso assim. O Corpo frequenta um lugar onde sempre conversa com outro Corpo, me parece feminino, onde escuta e fala muito, chora de vez em quando e sempre depois de períodos onde ocorrem essas conversas os ataques terroristas ocorrem. Por isso desse enorme botão vermelho, aliás gostou da referência?”

“Na verdade eu não entend…”.

“Meu SAIS ESSA GERAÇÃO…..PARANOIA, a música do Black Sabbath. Sempre que esses ataques terroristas ocorrem, apertamos esse botão para que as sequências todas voltem mais fortes ainda”.

“Entendi”.

“Pois bem, fique atenta pois tenho a impressão que eles devem chegar hoje com força”.

“Mas tem algum sinal de que o grupo apareça?”.

“Ter não tem, mas está sentindo esse cheiro?”. “Então, sempre que esse cheiro se torna mais forte, eles atacam”.

Eu sabia que cheiro era aquele, eu tinha certeza agora que todo meu treinamento estava certo e que jamais poderia estar no lugar errado, aliás, jamais poderia estar errada. E como seria maravilhoso poder matar dois malditos coelhos com uma cajadada só. Primeiro um chefe maldito, capitalista porco e depois poder fazer valer tudo aquilo que acredito e tenho por mais amor. Retiro o frasco do bolso, o aperto, direciono a luz para certificar-me que peguei o certo pela manhã. Sim, era esse. Abro um leve sorriso quando leio: FRASCO 134 A. V.I.D.A.S. EXTRATO DE ISRS E CLOMIPRAMINA.

x