14 de fevereiro de 2013

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A cria do oitavo dia...


E era assim que ela estava.
Dentro de seu casulo, protegida por todas as paredes da casa. Não tinha em seus olhos mais nada, a não ser duas pupilas sólidas que a levavam em direções e lugares de onde ela não poderiam mais sair. A escolha dela tinha sido única e concreta. Nada mais valeria a pena, se não fosse daquele jeito. Nada seria tão laconicamente visceral, antes do deserto nascer. Ele veio com força de doze trabalhos, em oceano devastado por geleiras e anemofilizado pelo vento. O mesmo que cortava a janela de seu apartamento, deixando a sensação de riso nervoso. Na sua frente apenas um quadro comprado porque ela simplesmente achava que as pessoas não entendiam o que ele passava, por isso tinha que ser apenas de Phoebe e mais ninguém. Lembrou quando o viu ao redor dos pseudo-intelectuais do comércio, salivando como coiotes em cima de peles soltas. Sem saber o que as cálidas cores costuravam. Ela riu internamente, pois sabia que não era uma questão de admirá-lo. Permanecer dentro dele era primordial. Phoebe sempre gostou de encarar a pintura com suas cores e tentar ficar o maior tempo possível dentro delas. Isso calava suas paranóias e acalmava seu corpo latente. Hoje ela não iria sair tão facilmente, pois o caminhar seria executado dentro da tela.
No segundo onde a pálpebra fechou-se pela terceira vez, ela colidiu com a tela. Estacionou o endoesqueleto em frente à parede morna e sudorípara. Fixamente marcando as margens da tela, ela suspirou lentamente.
Com os pulmões todos cheios, amarrou seu escafandro, checou os fios e saltou para o mar de tinta. Sentiu suas mãos fundindo-se a cada gota, passou por entre os verdes, vermelhos e azuis. Seus pulmões enchiam-se com oxigênio eletrolítico, que vagarosamente absorvia os bronquíolos, preenchendo cada hematose pulmonar com partículas com as variadas colorações. Seu torso nu deixava exposto o tingir de cada centímetro da epiderme, mudando a coloração em cada batimento. Então finalmente, mergulhou no vasto mar em névoa arroxeada. A água era calma.
O ar abundante em seu tubo de oxigênio, a deixava flutuar por mais espaço. Phoebe agora tinha o controle de todo o mundo em sua volta. Rainha de copas submarina, imersa dentro de um corpo que se dissolvia e solidificava quando ela queria. Ousou tomar formas e retirar pedaços. Ser algo a mais dentro da água. Deixava a força lisérgica salinizada do oceano fazer sua parte. Suas mãos eram extensões de um molde que mudava a cada segundo, deixando sua alma em mosaico. Metamorficamente ela observa o local onde agora não mais usa suas habilidades natatórias, mas sim anda por entre o fundo do oceano arroxeado.
Um bairro estava instalado na camada mais profunda, alguns centímetros da borda inferior esquerda do quadro. As ruas eram calmas e carros astrais circulavam sem escapamento, com suas rodas em liga leve de plástico. Dando passagem sempre que um cardume atravessava a grande camada de cimento formado por nuvens pavimentares.
Phoebe observava tudo atenta, maravilhando-se a cada detalhe. Olhou para cima. O fio que trazia o ar para dentro da água, ainda pairava na borda do quadro. Ela tinha o controle.
Pelo menos esse era o pensamento nesse instante.
Passando por entre as casas, viu seu jardim. O mesmo que acolheu o seu nascimento. Olhou novamente e viu seu pai abraçar Lorna com carinho em furor, trazendo um rubor catatônico em sua face. Eles então se amaram assim, enfurecidamente ao ar livre, sob a face derretida de um sol cristalizado, que iluminava o jardim naquela noite. Os dois, pai e Lorna, trocaram juras de todos os amores que nunca tiveram. Olhares ternos quando acenaram por entre os cavalos marinhos cocainômanos, que estavam presos em túbulos ligados ao centro nervoso de algumas algas fixadas no fundo do mar.
Phoebe passou pela varanda e correu por entre os pinheiros, livre de amarras. Rápida, sentia todo o ar passar por cada poro e cada gota do oceano fundir-se ao suor.
Atravessou sua antiga casa e sentiu todo o desespero ir embora. A calma instalara-se de maneira definitiva. Chegou como a amiga de sempre.
Phoebe estava salva enfim.
No fim do quarteirão ela percebeu algo diferente. A rua acabava em duas cascatas de estrelas marinhas, que na sua trajetória descendente batiam por toda a extensão dos rochedos. A cada pancada, um pedaço de sua estrutura tornava-se lama. Esse pedaço estelar em brasa durante o caminho tomava a forma sólida e escura, fazendo com que o chão ao redor das duas quedas fosse todo transpassado por buracos. Ela atravessa as duas cachoeiras com um sentido de medo. Mudança dramática na trama que poderia ser roteiro de um filme repleto de infantilismos. Mas Phoebe sabia que essas cenas não eram Disney e sim Romero.
Depois das quedas, apenas o chão árido. Então ela entendeu a calma e olhou para aquele deserto. Permaneceu incerta, mas a sensação de paz com sua vida passada a deixava plena em forças para o andar. Sabia que mais profundo ainda dentro do deserto deveria guiar seu escafandro. Ao atravessar a cascata, escutou pela última vez aquela velha voz lhe dizer eu te amo.
Secou seus pés na entrada, caminhou por entre as flores de pedra e as escolas velhas com jovens dentro de cada janela.
Aproximou-se do edifício que perdia alguns pedaços com o passar do tempo. O prédio despedaçado nascia por entre as nuvens de poeira seca. As paredes tinham uma coloração amarelada devido à ação dos ventos e eram cheias de poças de areia, como se cada uma segurasse um pedaço dos tijolos, que se despedaçavam formando um mosaico assimétrico em cada metro de todo o prédio. A escola não tinha muros, muito menos um pátio. Apenas ouviam-se os ecos de palavras jogadas aos ventos. Um silêncio pavoroso e vazio ao passar pela porta da frente.
Corredores como se o prédio fosse um hotel fora de temporada no meio de uma montanha gelada. Apenas o vento rei conversava com todas as quinas de portas entreabertas e de cores variadas. Em cada porta números em sequência. Em cada número uma diferente sala de aula e em casa sala, um jovem realizando uma tarefa diferente.
Uma menina de olhos brilhantes e lacrimosos costurava um vestido verde com fitas. Quando pronto, ele desfazia-se por entre o ar. Assim ela poderia começar a costurar o mesmo vestido novamente.
“Ela não sabe o que aconteceu”.
Phoebe assusta-se com a voz que lhe sussurra a frase, olha para trás e não vê ninguém. Apenas um boné do Mudhoney.
Ela se aproxima da menina, que a olha com seus olhos esperançosos e diz:
“Hoje meu bloco vai sair e não serei sozinha. Tornar-me-ei o maior estandarte”.
Phoebe se afasta. Não entendia.
Olhou em outra sala e viu um menino e suas tatuagens vivas contorcendo-se dentro da pele. Pareciam querer sair do seu corpo. O menino olha com um sorriso e sente cada partícula de tinta tentar arrebentar sua pele. Coloca seu lenço escondendo a boca, pois não quer gritar a dor. Tem uma máquina de tatuar em sua mão direita e desenha com ela em dermes artificiais.
“Estou preparando minha mudança e vou treinar nas costas de duas pessoas”. “Trabalho grande que vai me tomar tempo, mas serei lembrado por eles”. “O mundo jamais se esquecerá”.
Phoebe continuava sem saber por que do deserto trazer essas pessoas.
“Ele não sabe”. “Quer apenas sair”. “Está faminto”.
Ela vira-se novamente e não existe corpo para essa voz, apenas um boné.
Phoebe sai da escola e caminha por entre a areia fria. As estrelas lhe anunciam a chegada da aridez. Ao longe uma voz, tangenciando. Uma familiar, a voz de Andy Kaufman
Ela não acredita.
Seu pensamento obtuso e anasalado não consegue entender. Tudo isso foi obra dele. Estou em uma armadilha cínica, ela pensa. Decide então voltar.
Nesse momento seu escafandro solta-se e ela vê o fio desaparecer na borda do quadro.
Respira, mas sem o cinto de segurança. Vira-se então ao encontro dele.
“Demorou demais para chegar”. Exclama Andy.
“Não queria te encontrar”
“Ninguém quer, mas é inevitável”. “Eu sempre estou lá”. Nesse momento ele acende um cigarro e oferece.
"Não, obrigado”. ”Você sabe que eu não fumo, nunca gostei”.
“Você nunca gostou do seu corpo, mas sempre o usou também”. “Aliás, eu preciso te perguntar, como é que ele aguentou tudo isso?”. “Já sei”. “Eu te fiz forte!”. “A genética é uma das minhas maiores criações, você não acha?”.
“Na verdade eu preciso te contar um segredo”, diz Phoebe, “Meu corpo aguentou porque eu quis que ele agüentasse”. “Ele só suportou aquilo que eu queria, apenas passou por onde desejei”. “Ele mudou porque assim foi feita a minha vontade”. “E não a sua”.
"Na verdade você se engana padmé”. “Se eu te criei, só aguentou porque eu a fiz assim”. Andy traga o cigarro e solta a fumaça em forma de crucifixos, que sangram um óleo amendoado cheio de hemácias.
“Você não cansa de admirar seu próprio umbigo, é isso?”. “A humildade não foi uma das coisas que você pregou?”.
“Me reponde uma coisa então amada Phoebe”. “Onde a humildade te levou?”. “Onde a lealdade te trouxe?”. “O que seu sarcasmo ensaiado e escrito por Nietzsche te mostrou?”.  “Diga-me por que eu quero entender”. “E você sabe que definitivamente, a sua vida não foi pautada por coisas que eu possa chamar felicidade eterna”. “Eu diria que a sua vida foi pautada pelo just 'cos you feel doesn't mean it's there”.
Nesse momento Andy estala os dedos, Thom Yorke cantarola.
Andy continua. “Mas não precisa responder, eu falo”.
“Tudo isso te trouxe até mim”. “Você voltou aqui exatamente por que todas essas coisas não te trouxeram nada”. “Tudo o que eu fiz foi isso, te mostrar algo”. “E você nunca foi capaz de entender”. “Toda a vez em que soprava aos seus ouvidos o quanto te amava, você deveria acreditar”. “Deveria ser muito mais forte do que foi”. “Mas a sua resposta foi como a de todos os humanos”. “Foi fraca e você sucumbiu ao desejo do mundano, da imagem”. “Você não foi capaz de entender, que antes de mudar isso, tinha que mudar a fraqueza”. “Você perdeu sua alma em uma mesa de baralho cirúrgico e isso eu nunca te mostrei”. “Eu nunca quis”. “Você pergunta sobre humildade”. “A minha acabou junto com a inocência, ao ver meu filho no deserto ser tentado pelo meu yang”. “Ele não sucumbiu e mesmo assim foi dilacerado pela humanidade”. “Desse dia em diante, vocês são meus ratinhos dentro da roda”. “São a minha ira, minha vingança”. “Eu os criei a minha imagem e semelhança para poder fazer vocês refletirem no espelho e terem a vergonha em saber disso”. “O livre arbítrio é minha maior vendeta”.
Andy acende um cigarro com o filtro do outro.
“Escolhas Phoebe, eu te dei escolhas e você não as quis”. “Preferiu o caminho mais doloroso”. “Não que não tenha me deleitado, na minha roupa de látex preta, vendo tudo isso”. “Eu pensava que você transcenderia”. “Tinha esperança em você, mas eu deveria deixar minha esperança enterrada junto com meu ódio”. “Dentro do meu peito e escondida”.
“Sabe, eu ainda tentei te mostrar isso agora mesmo”. “Levei você para aquele prédio velho, onde os mortos não sabem que estão mortos”. “Onde as pessoas querem desesperadamente ter aquilo que eu te dei em abundância, a vida”. “Todos eles morreram antes de terminarem a maior de todas as passagens, que é viver em plenitude”. “Achei que te jogando tudo isso na cara, essa conversa não seria necessária”. “Que você entenderia”.
“Mas me enganei de novo”.
Ela o olha com ternura. Aproxima-se e o beija longamente. Suas línguas se entrelaçam. Ela sente o sabor do filtro do cigarro por entre seus dentes. Aperta-o contra o peito e seus seios revelam uma excitação sombria. I got you under my skin revela o fundo musical que não é mais controlado por Andy.
Ela o olha mais uma vez.
“Não chora mais não”. Ela disse com ternura inerente de ave maria.
“Agora entendo o que você quis me dizer durante todos esses anos”. “Eu entendo todas as suas linhas tortas e todos seus salmos”. “Nunca desejei ver você queimar, por nenhuma das coisas que aconteceram comigo”. “Todas elas foram escolhas que você me permitiu fazer e por isso eu te agradeço”. “Por me fazer pensar fora da roda de ratos”. “Dispensar todo esse cuidado”. “Na verdade eu te amo muito mais do que você imagina”. “Mas mesmo assim, você sempre será patético demais para mim”.
A baforada de Andy é cortada pela metade.
“Sempre será estúpida essa tua busca pela perfeição mental, que você tenta comprovar com seu grande laboratório”. “Se você nos criou cheios de contradições e defeitos, deveria ao menos assumir a culpa”. “Foi desleixado e ignorante da própria força”. “Não soube nunca o que fazer com todo esse poder que lhe foi dado de graça”. “Porque ninguém mais teve a coragem de te desafiar”. “Você não lutou por nada, só chegou na frente dos demais”. “Me diz então qual é o seu mérito?”. “Ser mais rápido em uma corrida de um só?”. “Vejo hipocrisia, não vitória”. “Vejo medo de se comprometer com o desconhecido”. “Vejo você, perdido dentro da sua própria grandeza impotente”. “Chupando seu pau e retirando mais e mais costelas para ter o prazer que sempre mereceu”. “Ou que na verdade, você acha que merece”.
“E é engraçado tudo isso, porque você me fez desse jeito, um nada”. “Sua imagem e semelhança”. “Fui a sua criação perfeita”. “Uma aberração em um corpo só”.
“Eu era menino e menina ao mesmo tempo”. “Nascido homem, tenho um pênis, mas meu corpo é de mulher”. “Minha sombra confundiu todos pelos quais me apaixonei”. “Todos que por mim passaram”. “Fui sim a sua mais bem sucedida experiência”. “Demorei a entender o que você queria de mim quando percebi que mesmo sendo um menino, sentia-me mulher”. “Adorava coisas do universo feminino e queria ser completa”. “Mas estava dentro desse corpo, então percebi toda a sua jogada”. “Me vi dentro da roda com os outros ratos e lutei com todas as minhas forças”. “Mudei a sua genética e moldei meu corpo para conter toda a minha alma feminina dentro dele”. “Implantes, cabelos, mas mesmo assim não entendia por que faltava sempre um pedaço”. “Resolvi então fazer o que você deveria ter feito antes de ter esses seus ataques”. “Olhei para o chão e me redimi”. “Percebi nitidamente o que eu deveria fazer e não poderia simplesmente aceitar o destino”. “Não posso contentar-me em apenas passar por este mundo, sem ao menos fazer algo que me leve de volta para o meu criador”. “Phoebeisntein precisava voltar para quem havia lhe dado vida”. “Mas de que maneira, se você é responsável por todo o universo e por todas as terras do nunca?”.
“E é por isso que hoje me encontro aqui dentro desse quadro com você Andy”. “Vim mostrar que você perdeu”. “Eu vou transcender toda essa carne podre cavernosa que me destes”. “Hoje você não pode mais fazer o que bem entender, porque eu tomo seu lugar no que diz respeito à onipresença”. “Estou aqui para te dizer que seu reinado de sarcasmo acabou”. “Porque o monstro que você construiu, tomou consciência de toda a verdade”. “Descobri quem era atrás da cortina e eu sei que tudo o que sou realmente não cabe dentro de um corpo”. “Seja ele de homem ou mulher”. “Eu preciso expandir-me por todo o mundo e mostrar ao universo a beleza de nos transformarmos naquilo que realmente somos”. “Aquilo que temos de mais maravilhoso e deixamos escapar, seja pelas colunas sociais ou pela nossa própria mortalidade”. “Hoje eu entendo que você não criou, apenas acendeu o fogo e deixou queimar humanidade”. “Por isso estou aqui pra te dizer que essa chama vai incendiar o mundo”. “Não haverá prece que impedirá o universo de queimar alto”. “Eu vou deixar todos saberem o quanto é um hipócrita lunático e nunca mais você vai colocar alguém dentro da gaiola de ratos”. “Porque hoje eu sou uma só com o universo”.  “Sou cristal e vou refletir toda a luz que mora dentro do meu corpo”. “Para poder iluminar todo esse povo que você cegou com seu livre arbítrio cínico”. “Essa manobra que reflete a maior ironia de todas”. “O livre escolher comandado por uma mente doentia como a sua”. “Vou te mostrar como é possível espalhar a essência”. “E deixar as pessoas verem que somos maiores, somos todos crias do oitavo dia”. “Merecemos viver sob a nova ordem livre”. “Viver sem amarras, em plenitude”. “Mais do que simples seres humanos”.
“Teu sarcasmo morre aqui”. “Vou drenar a vida de dentro desse corpo que nasceu aberração, destinada ao fracasso”. “Com flor e dois órgãos, que hoje polinizarão irreversivelmente teu labirinto”.
Phoebe abre os olhos e está fora do quadro. Sem pensar olha-o e suspira.
Em um só golpe arranca o membro masculino com a lâmina que brilhava em suas mãos. A faca golpeia seu sexo vigorosamente. O menino que um dia nascerá mulher não mais existe e a mulher que morava presa se vê livre. O sangue corre rápido como queda d'água, Phoebe cai.
Sente seu pulso fraco, sorri. Inundada pelo seu líquido mais precioso.
Uma lágrima salina escorre pela órbita esquerda. Joga a faca longe. Cai na sacada e seu sangue desce cambaleante pelas arestas. Phoebe não sente mais ódio, não sente mais raiva. Está sorrindo livre, passa a mão pela poça e cheira seu próprio sangue. Deleita-se com o doce e morno sabor exalado naquele momento. Escorre pelas suas mãos e ela o deixa ir. O vento entra pela sua sala e a faz levitar. De braços estendidos ela ilumina-se.
O sangue corre por todas as portas e começa a encher a sala. Phoebe sente toda a plenitude de sua menarca, enquanto o líquido atinge o teto. Explode pelas paredes do apartamento e sai ejaculado pela janela.
Forma-se um arco íris dentro de sua casa. Ela observa, enquanto as hemácias passam pelas ruas e nos jardins dos prédios vizinhos. E quando chegam ao solo, flores começam a brotar. Dentro das árvores orquídeas muticoloridas extravasam caules sólidos corroídos pelo tempo. Seu sangue torna-se parte do asfalto e dele nascem fontes, onde a vida se forma através de explosões. Corre livre pelas calçadas. Phoebe olha enquanto os homens respiram essa vida hematófaga que vulcanicamente esfacela o cotidiano. Eles então se sentem mais vivos, em comunhão com o mundo. Ela transcende a morte eminente, está tornando-se toda a vida. Libertando-se de tudo o que lhe foi imposto. Ela já não tem mais a dimensão da quantidade, apenas sabe que o mundo está colorindo-se de cor avermelhada e viva. Vê seu corpo tomar conta de todo o universo, e ao mesmo tempo, fazer dela aquilo que sempre quis ser. Uma linda rosa azul.
Os paramédicos arrombam a porta do apartamento em exatos trinta e três minutos depois e encontram seu corpo no chão mutilado. Sobre uma poça vermelha. Eles não sabem precisar o que é aquele ser estranho jogado no centro da sala. Se está vivo ou não. Carregam o corpo com cuidado e posicionam Phoebe na maca. Amarram firme.
Enquanto eles a levam da sala, a menina que acabara de nascer abre os olhos e suspira. Ao longe vê a sua flor azul florescer em um galho de árvore. Ela sorri e fecha os olhos. Andy acende mais um cigarro. Em sua mão direita vermelha está o telefone que ainda mostra o número 190 no painel. Ele ajeita a aba de seu boné do Mudhoney, levanta seus olhos em direção da rua onde a ambulância está. Na lateral esquerda de sua boca uma frase quase inaudível. “Sim meu maior amor, Phoebe. Você é a minha maior experiência”.
No terceiro dia, Phoebe abre os olhos. Aperta seu corpo todo e ele agora está completo. Sente o espaço ocupado outrora por um pequeno órgão sexual masculino e que agora está pronto como uma tela em branco. Ela sabe que é apenas uma questão de tempo, para a sua desejada vida como mulher completa começar. Livre estava finalmente.