E era assim que ela estava.
Dentro de seu casulo, protegida por
todas as paredes da casa. Não tinha em seus olhos mais nada, a não ser duas
pupilas sólidas que a levavam em direções e lugares de onde ela não poderiam
mais sair. A escolha dela tinha sido única e concreta. Nada mais valeria a
pena, se não fosse daquele jeito. Nada seria tão laconicamente visceral, antes
do deserto nascer. Ele veio com força de doze trabalhos, em oceano devastado
por geleiras e anemofilizado pelo vento. O mesmo que cortava a janela de seu
apartamento, deixando a sensação de riso nervoso. Na sua frente apenas um
quadro comprado porque ela simplesmente achava que as pessoas não entendiam o
que ele passava, por isso tinha que ser apenas de Phoebe e mais ninguém.
Lembrou quando o viu ao redor dos pseudo-intelectuais do comércio, salivando
como coiotes em cima de peles soltas. Sem saber o que as cálidas cores
costuravam. Ela riu internamente, pois sabia que não era uma questão de
admirá-lo. Permanecer dentro dele era primordial. Phoebe sempre gostou de
encarar a pintura com suas cores e tentar ficar o maior tempo possível dentro
delas. Isso calava suas paranóias e acalmava seu corpo latente. Hoje ela não
iria sair tão facilmente, pois o caminhar seria executado dentro da tela.
No segundo onde a pálpebra fechou-se pela
terceira vez, ela colidiu com a tela. Estacionou o endoesqueleto em frente à
parede morna e sudorípara. Fixamente marcando as margens da tela, ela suspirou
lentamente.
Com os pulmões todos cheios, amarrou
seu escafandro, checou os fios e saltou para o mar de tinta. Sentiu suas mãos
fundindo-se a cada gota, passou por entre os verdes, vermelhos e azuis. Seus
pulmões enchiam-se com oxigênio eletrolítico, que vagarosamente absorvia os
bronquíolos, preenchendo cada hematose pulmonar com partículas com as variadas
colorações. Seu torso nu deixava exposto o tingir de cada centímetro da
epiderme, mudando a coloração em cada batimento. Então finalmente, mergulhou no
vasto mar em névoa arroxeada. A água era calma.
O ar abundante em seu tubo de oxigênio,
a deixava flutuar por mais espaço. Phoebe agora tinha o controle de todo o
mundo em sua volta. Rainha de copas submarina, imersa dentro de um corpo que se
dissolvia e solidificava quando ela queria. Ousou tomar formas e retirar
pedaços. Ser algo a mais dentro da água. Deixava a força lisérgica salinizada
do oceano fazer sua parte. Suas mãos eram extensões de um molde que mudava a
cada segundo, deixando sua alma em mosaico. Metamorficamente ela observa o
local onde agora não mais usa suas habilidades natatórias, mas sim anda por
entre o fundo do oceano arroxeado.
Um bairro estava instalado na camada
mais profunda, alguns centímetros da borda inferior esquerda do quadro. As ruas
eram calmas e carros astrais circulavam sem escapamento, com suas rodas em liga
leve de plástico. Dando passagem sempre que um cardume atravessava a grande
camada de cimento formado por nuvens pavimentares.
Phoebe observava tudo atenta,
maravilhando-se a cada detalhe. Olhou para cima. O fio que trazia o ar para
dentro da água, ainda pairava na borda do quadro. Ela tinha o controle.
Pelo menos esse era o pensamento nesse
instante.
Passando por entre as casas, viu seu
jardim. O mesmo que acolheu o seu nascimento. Olhou novamente e viu seu pai
abraçar Lorna com carinho em furor, trazendo um rubor catatônico em sua face.
Eles então se amaram assim, enfurecidamente ao ar livre, sob a face derretida
de um sol cristalizado, que iluminava o jardim naquela noite. Os dois, pai e
Lorna, trocaram juras de todos os amores que nunca tiveram. Olhares ternos quando
acenaram por entre os cavalos marinhos cocainômanos, que estavam presos em
túbulos ligados ao centro nervoso de algumas algas fixadas no fundo do mar.
Phoebe passou pela varanda e correu por
entre os pinheiros, livre de amarras. Rápida, sentia todo o ar passar por cada
poro e cada gota do oceano fundir-se ao suor.
Atravessou sua antiga casa e sentiu
todo o desespero ir embora. A calma instalara-se de maneira definitiva. Chegou
como a amiga de sempre.
Phoebe estava salva enfim.
No fim do quarteirão ela percebeu algo
diferente. A rua acabava em duas cascatas de estrelas marinhas, que na sua
trajetória descendente batiam por toda a extensão dos rochedos. A cada pancada,
um pedaço de sua estrutura tornava-se lama. Esse pedaço estelar em brasa
durante o caminho tomava a forma sólida e escura, fazendo com que o chão ao
redor das duas quedas fosse todo transpassado por buracos. Ela atravessa as
duas cachoeiras com um sentido de medo. Mudança dramática na trama que poderia
ser roteiro de um filme repleto de infantilismos. Mas Phoebe sabia que essas
cenas não eram Disney e sim Romero.
Depois das quedas, apenas o chão árido.
Então ela entendeu a calma e olhou para aquele deserto. Permaneceu incerta, mas
a sensação de paz com sua vida passada a deixava plena em forças para o andar.
Sabia que mais profundo ainda dentro do deserto deveria guiar seu escafandro.
Ao atravessar a cascata, escutou pela última vez aquela velha voz lhe dizer eu
te amo.
Secou seus pés na entrada, caminhou por
entre as flores de pedra e as escolas velhas com jovens dentro de cada janela.
Aproximou-se do edifício que perdia
alguns pedaços com o passar do tempo. O prédio despedaçado nascia por entre as
nuvens de poeira seca. As paredes tinham uma coloração amarelada devido à ação
dos ventos e eram cheias de poças de areia, como se cada uma segurasse um
pedaço dos tijolos, que se despedaçavam formando um mosaico assimétrico em cada
metro de todo o prédio. A escola não tinha muros, muito menos um pátio. Apenas
ouviam-se os ecos de palavras jogadas aos ventos. Um silêncio pavoroso e vazio
ao passar pela porta da frente.
Corredores como se o prédio fosse um
hotel fora de temporada no meio de uma montanha gelada. Apenas o vento rei
conversava com todas as quinas de portas entreabertas e de cores variadas. Em
cada porta números em sequência. Em cada número uma diferente sala de aula e em
casa sala, um jovem realizando uma tarefa diferente.
Uma menina de olhos brilhantes e
lacrimosos costurava um vestido verde com fitas. Quando pronto, ele desfazia-se
por entre o ar. Assim ela poderia começar a costurar o mesmo vestido novamente.
“Ela não sabe o que aconteceu”.
Phoebe assusta-se com a voz que lhe
sussurra a frase, olha para trás e não vê ninguém. Apenas um boné do Mudhoney.
Ela se aproxima da menina, que a olha
com seus olhos esperançosos e diz:
“Hoje meu bloco vai sair e não serei
sozinha. Tornar-me-ei o maior estandarte”.
Phoebe se afasta. Não entendia.
Olhou em outra sala e viu um menino e
suas tatuagens vivas contorcendo-se dentro da pele. Pareciam querer sair do seu
corpo. O menino olha com um sorriso e sente cada partícula de tinta tentar
arrebentar sua pele. Coloca seu lenço escondendo a boca, pois não quer gritar a
dor. Tem uma máquina de tatuar em sua mão direita e desenha com ela em dermes
artificiais.
“Estou preparando minha mudança e vou
treinar nas costas de duas pessoas”. “Trabalho grande que vai me tomar tempo,
mas serei lembrado por eles”. “O mundo jamais se esquecerá”.
Phoebe continuava sem saber por que do
deserto trazer essas pessoas.
“Ele não sabe”. “Quer apenas sair”.
“Está faminto”.
Ela vira-se novamente e não existe
corpo para essa voz, apenas um boné.
Phoebe sai da escola e caminha por
entre a areia fria. As estrelas lhe anunciam a chegada da aridez. Ao longe uma
voz, tangenciando. Uma familiar, a voz de Andy Kaufman
Ela não acredita.
Seu pensamento obtuso e anasalado não
consegue entender. Tudo isso foi obra dele. Estou em uma armadilha cínica, ela
pensa. Decide então voltar.
Nesse momento seu escafandro solta-se e
ela vê o fio desaparecer na borda do quadro.
Respira, mas sem o cinto de segurança.
Vira-se então ao encontro dele.
“Demorou demais para chegar”. Exclama
Andy.
“Não queria te encontrar”
“Ninguém quer, mas é inevitável”. “Eu
sempre estou lá”. Nesse momento ele acende um cigarro e oferece.
"Não, obrigado”. ”Você sabe que eu
não fumo, nunca gostei”.
“Você nunca gostou do seu corpo, mas
sempre o usou também”. “Aliás, eu preciso te perguntar, como é que ele aguentou
tudo isso?”. “Já sei”. “Eu te fiz forte!”. “A genética é uma das minhas maiores
criações, você não acha?”.
“Na verdade eu preciso te contar um
segredo”, diz Phoebe, “Meu corpo aguentou porque eu quis que ele agüentasse”.
“Ele só suportou aquilo que eu queria, apenas passou por onde desejei”. “Ele
mudou porque assim foi feita a minha vontade”. “E não a sua”.
"Na verdade você se engana padmé”.
“Se eu te criei, só aguentou porque eu a fiz assim”. Andy traga o cigarro e
solta a fumaça em forma de crucifixos, que sangram um óleo amendoado cheio de
hemácias.
“Você não cansa de admirar seu próprio
umbigo, é isso?”. “A humildade não foi uma das coisas que você pregou?”.
“Me reponde uma coisa então amada
Phoebe”. “Onde a humildade te levou?”. “Onde a lealdade te trouxe?”. “O que seu
sarcasmo ensaiado e escrito por Nietzsche te mostrou?”. “Diga-me por que eu quero entender”. “E você
sabe que definitivamente, a sua vida não foi pautada por coisas que eu possa
chamar felicidade eterna”. “Eu diria que a sua vida foi pautada pelo just 'cos you feel doesn't mean it's there”.
Nesse momento Andy estala os dedos,
Thom Yorke cantarola.
Andy continua. “Mas não precisa
responder, eu falo”.
“Tudo isso te trouxe até mim”. “Você
voltou aqui exatamente por que todas essas coisas não te trouxeram nada”. “Tudo
o que eu fiz foi isso, te mostrar algo”. “E você nunca foi capaz de entender”.
“Toda a vez em que soprava aos seus ouvidos o quanto te amava, você deveria
acreditar”. “Deveria ser muito mais forte do que foi”. “Mas a sua resposta foi
como a de todos os humanos”. “Foi fraca e você sucumbiu ao desejo do mundano,
da imagem”. “Você não foi capaz de entender, que antes de mudar isso, tinha que
mudar a fraqueza”. “Você perdeu sua alma em uma mesa de baralho cirúrgico e
isso eu nunca te mostrei”. “Eu nunca quis”. “Você pergunta sobre humildade”. “A
minha acabou junto com a inocência, ao ver meu filho no deserto ser tentado
pelo meu yang”. “Ele não sucumbiu e mesmo assim foi dilacerado pela
humanidade”. “Desse dia em diante, vocês são meus ratinhos dentro da roda”.
“São a minha ira, minha vingança”. “Eu os criei a minha imagem e semelhança
para poder fazer vocês refletirem no espelho e terem a vergonha em saber
disso”. “O livre arbítrio é minha maior vendeta”.
Andy acende um cigarro com o filtro do
outro.
“Escolhas Phoebe, eu te dei escolhas e
você não as quis”. “Preferiu o caminho mais doloroso”. “Não que não tenha me
deleitado, na minha roupa de látex preta, vendo tudo isso”. “Eu pensava que
você transcenderia”. “Tinha esperança em você, mas eu deveria deixar minha
esperança enterrada junto com meu ódio”. “Dentro do meu peito e escondida”.
“Sabe, eu ainda tentei te mostrar isso
agora mesmo”. “Levei você para aquele prédio velho, onde os mortos não sabem
que estão mortos”. “Onde as pessoas querem desesperadamente ter aquilo que eu
te dei em abundância, a vida”. “Todos eles morreram antes de terminarem a maior
de todas as passagens, que é viver em plenitude”. “Achei que te jogando tudo
isso na cara, essa conversa não seria necessária”. “Que você entenderia”.
“Mas me enganei de novo”.
Ela o olha com ternura. Aproxima-se e o
beija longamente. Suas línguas se entrelaçam. Ela sente o sabor do filtro do
cigarro por entre seus dentes. Aperta-o contra o peito e seus seios revelam uma
excitação sombria. I got you under my
skin revela o fundo musical que não é mais controlado por Andy.
Ela o olha mais uma vez.
“Não chora mais não”. Ela disse com
ternura inerente de ave maria.
“Agora entendo o que você quis me dizer
durante todos esses anos”. “Eu entendo todas as suas linhas tortas e todos seus
salmos”. “Nunca desejei ver você queimar, por nenhuma das coisas que
aconteceram comigo”. “Todas elas foram escolhas que você me permitiu fazer e
por isso eu te agradeço”. “Por me fazer pensar fora da roda de ratos”.
“Dispensar todo esse cuidado”. “Na verdade eu te amo muito mais do que você
imagina”. “Mas mesmo assim, você sempre será patético demais para mim”.
A baforada de Andy é cortada pela
metade.
“Sempre será estúpida essa tua busca
pela perfeição mental, que você tenta comprovar com seu grande laboratório”.
“Se você nos criou cheios de contradições e defeitos, deveria ao menos assumir
a culpa”. “Foi desleixado e ignorante da própria força”. “Não soube nunca o que
fazer com todo esse poder que lhe foi dado de graça”. “Porque ninguém mais teve
a coragem de te desafiar”. “Você não lutou por nada, só chegou na frente dos
demais”. “Me diz então qual é o seu mérito?”. “Ser mais rápido em uma corrida
de um só?”. “Vejo hipocrisia, não vitória”. “Vejo medo de se comprometer com o
desconhecido”. “Vejo você, perdido dentro da sua própria grandeza impotente”.
“Chupando seu pau e retirando mais e mais costelas para ter o prazer que sempre
mereceu”. “Ou que na verdade, você acha que merece”.
“E é engraçado tudo isso, porque você
me fez desse jeito, um nada”. “Sua imagem e semelhança”. “Fui a sua criação
perfeita”. “Uma aberração em um corpo só”.
“Eu era menino e menina ao mesmo
tempo”. “Nascido homem, tenho um pênis, mas meu corpo é de mulher”. “Minha
sombra confundiu todos pelos quais me apaixonei”. “Todos que por mim passaram”.
“Fui sim a sua mais bem sucedida experiência”. “Demorei a entender o que você
queria de mim quando percebi que mesmo sendo um menino, sentia-me mulher”.
“Adorava coisas do universo feminino e queria ser completa”. “Mas estava dentro
desse corpo, então percebi toda a sua jogada”. “Me vi dentro da roda com os
outros ratos e lutei com todas as minhas forças”. “Mudei a sua genética e
moldei meu corpo para conter toda a minha alma feminina dentro dele”.
“Implantes, cabelos, mas mesmo assim não entendia por que faltava sempre um
pedaço”. “Resolvi então fazer o que você deveria ter feito antes de ter esses
seus ataques”. “Olhei para o chão e me redimi”. “Percebi nitidamente o que eu
deveria fazer e não poderia simplesmente aceitar o destino”. “Não posso
contentar-me em apenas passar por este mundo, sem ao menos fazer algo que me
leve de volta para o meu criador”. “Phoebeisntein precisava voltar para quem
havia lhe dado vida”. “Mas de que maneira, se você é responsável por todo o
universo e por todas as terras do nunca?”.
“E é por isso que hoje me encontro aqui
dentro desse quadro com você Andy”. “Vim mostrar que você perdeu”. “Eu vou
transcender toda essa carne podre cavernosa que me destes”. “Hoje você não pode
mais fazer o que bem entender, porque eu tomo seu lugar no que diz respeito à
onipresença”. “Estou aqui para te dizer que seu reinado de sarcasmo acabou”.
“Porque o monstro que você construiu, tomou consciência de toda a verdade”.
“Descobri quem era atrás da cortina e eu sei que tudo o que sou realmente não
cabe dentro de um corpo”. “Seja ele de homem ou mulher”. “Eu preciso
expandir-me por todo o mundo e mostrar ao universo a beleza de nos
transformarmos naquilo que realmente somos”. “Aquilo que temos de mais
maravilhoso e deixamos escapar, seja pelas colunas sociais ou pela nossa
própria mortalidade”. “Hoje eu entendo que você não criou, apenas acendeu o
fogo e deixou queimar humanidade”. “Por isso estou aqui pra te dizer que essa
chama vai incendiar o mundo”. “Não haverá prece que impedirá o universo de
queimar alto”. “Eu vou deixar todos saberem o quanto é um hipócrita lunático e
nunca mais você vai colocar alguém dentro da gaiola de ratos”. “Porque hoje eu
sou uma só com o universo”. “Sou cristal
e vou refletir toda a luz que mora dentro do meu corpo”. “Para poder iluminar
todo esse povo que você cegou com seu livre arbítrio cínico”. “Essa manobra que
reflete a maior ironia de todas”. “O livre escolher comandado por uma mente
doentia como a sua”. “Vou te mostrar como é possível espalhar a essência”. “E
deixar as pessoas verem que somos maiores, somos todos crias do oitavo dia”.
“Merecemos viver sob a nova ordem livre”. “Viver sem amarras, em plenitude”.
“Mais do que simples seres humanos”.
“Teu sarcasmo morre aqui”. “Vou drenar
a vida de dentro desse corpo que nasceu aberração, destinada ao fracasso”. “Com
flor e dois órgãos, que hoje polinizarão irreversivelmente teu labirinto”.
Phoebe abre os olhos e está fora do
quadro. Sem pensar olha-o e suspira.
Em um só golpe arranca o membro
masculino com a lâmina que brilhava em suas mãos. A faca golpeia seu sexo
vigorosamente. O menino que um dia nascerá mulher não mais existe e a mulher
que morava presa se vê livre. O sangue corre rápido como queda d'água, Phoebe
cai.
Sente seu pulso fraco, sorri. Inundada
pelo seu líquido mais precioso.
Uma lágrima salina escorre pela órbita
esquerda. Joga a faca longe. Cai na sacada e seu sangue desce cambaleante pelas
arestas. Phoebe não sente mais ódio, não sente mais raiva. Está sorrindo livre,
passa a mão pela poça e cheira seu próprio sangue. Deleita-se com o doce e
morno sabor exalado naquele momento. Escorre pelas suas mãos e ela o deixa ir.
O vento entra pela sua sala e a faz levitar. De braços estendidos ela
ilumina-se.
O sangue corre por todas as portas e
começa a encher a sala. Phoebe sente toda a plenitude de sua menarca, enquanto
o líquido atinge o teto. Explode pelas paredes do apartamento e sai ejaculado
pela janela.
Forma-se um arco íris dentro de sua
casa. Ela observa, enquanto as hemácias passam pelas ruas e nos jardins dos
prédios vizinhos. E quando chegam ao solo, flores começam a brotar. Dentro das
árvores orquídeas muticoloridas extravasam caules sólidos corroídos pelo tempo.
Seu sangue torna-se parte do asfalto e dele nascem fontes, onde a vida se forma
através de explosões. Corre livre pelas calçadas. Phoebe olha enquanto os
homens respiram essa vida hematófaga que vulcanicamente esfacela o cotidiano.
Eles então se sentem mais vivos, em comunhão com o mundo. Ela transcende a
morte eminente, está tornando-se toda a vida. Libertando-se de tudo o que lhe
foi imposto. Ela já não tem mais a dimensão da quantidade, apenas sabe que o
mundo está colorindo-se de cor avermelhada e viva. Vê seu corpo tomar conta de
todo o universo, e ao mesmo tempo, fazer dela aquilo que sempre quis ser. Uma
linda rosa azul.
Os paramédicos arrombam a porta do
apartamento em exatos trinta e três minutos depois e encontram seu corpo no
chão mutilado. Sobre uma poça vermelha. Eles não sabem precisar o que é aquele
ser estranho jogado no centro da sala. Se está vivo ou não. Carregam o corpo
com cuidado e posicionam Phoebe na maca. Amarram firme.
Enquanto eles a levam da sala, a menina
que acabara de nascer abre os olhos e suspira. Ao longe vê a sua flor azul
florescer em um galho de árvore. Ela sorri e fecha os olhos. Andy acende mais
um cigarro. Em sua mão direita vermelha está o telefone que ainda mostra o
número 190 no painel. Ele ajeita a aba de seu boné do Mudhoney, levanta seus
olhos em direção da rua onde a ambulância está. Na lateral esquerda de sua boca
uma frase quase inaudível. “Sim meu maior amor, Phoebe. Você é a minha maior
experiência”.
No terceiro dia, Phoebe abre os olhos.
Aperta seu corpo todo e ele agora está completo. Sente o espaço ocupado outrora
por um pequeno órgão sexual masculino e que agora está pronto como uma tela em
branco. Ela sabe que é apenas uma questão de tempo, para a sua desejada vida
como mulher completa começar. Livre estava finalmente.