22 de janeiro de 2014



Amarente

O sangue morto descansava no palato.

Mais importante do que tentar abrir os olhos, era precisar se estava viva ou não. Uns poucos suspiros herméticos ainda não encontravam reverberação dentro do peito, e, menos por precaução e mais por uma lacerante fraqueza, não conseguia sequer levantar os braços para tentar enxergá-los. O que acabaria tornando-se uma tarefa ainda mais ingrata, afinal de contas as retinas estavam embaçadas e cobertas por algum tipo de pomada, dificultando ainda mais as frustrantes tentativas em manter uma conversa racional com o meio ambiente. Homeostasia enfraquecida pela inércia do tentar morrer em cada inspiração forçada. A incapacidade em cortar-se ao meio e depois sobreviver colocadas em jogo naqueles iniciais instantes, onde marejados olhos em vão moviam-se. Existia um reconforto por estar deitada sem nenhuma sensação de esforço corroendo os músculos, porém era só isso. Uma bolha de tempo onde estava imersa. O mundo resumia-se apenas nas tentativas de entender onde estava e como estava. Antes, porém era preciso tentar abrir os espelhos da alma e redescobrir o foco nas órbitas. Os castanhos claros olhos durante muito tempo foram meus dois faróis internos, quando procurava desesperadamente saber quem era ao olhar-me no espelho. Os mesmos perdidos globos oculares que agora lutavam para abrirem-se foram portos no tempo onde tentava em vão salvar-me, entretanto, hoje lutavam contra minha vontade em morrer, esta, que não me deixara dormir durante toda a noite, esta, que trouxera o desespero dentro dos restos meus que sangravam ainda depois de quase doze horas. A morte não me fazia mais companhia, mas eu a queria, sedenta estava ainda pelo amargo gosto que ela deixou, sussurrando gemidos em minha vagina renascida, em tremores de pele eletrificada o vento em suas mãos tomou-me por completo com vociferação aguda, tombando-me em velocidade terminal, alvejando, retorcendo minhas mãos, amando minhas entranhas com sofreguidão exilada, torceu-me como se as notas fossem apenas possíveis se tocadas ao mesmo tempo, lambendo meus seios com luz, atravessou-me as coxas deslocando um rastro de ódio e sangue ejaculados incessantemente em cada inspiração forçada dentro da sala onde nos tocávamos. Minha morte e eu. Expulsas parasitas que sempre fomos de todos os que nos rodeavam, duas amantes ladras desavisadas sobre o destino carcerário onde nos encontrávamos no dia de hoje. Soltas pontas de fios desencapados sem o menor condicionamento ao não destruir ou atacar.

Ao final de todas as conclusões, sempre fui muito parecida com minha morte, mesmo sabendo que agora estava lentamente deixando-a sem ao menos uma carta de despedida, como meretriz varrida da minha consciência após uma noite de sofreguidão paga e coberta de cocaína. Esquecida ela iria aos poucos esvaindo-se nos restos de minhas células sanguíneas e nos pedaços das cascas nas feridas posteriormente nascidas ali em minhas profundas cicatrizes. Morreria sem deixar testamento, um dia ressuscitaria mais forte e enfim levaria os restos de corpo e as esparsas manifestações de minha alma. Atravessaria uma última porta sem chaveiro ou maestro e colocaria um corpo inerte ao lado de meu maldito criador. Mas isso aconteceria muito tempo depois de hoje, pois promessas feitas dentro da lava quente jamais poderiam ser quebradas, mesmo as feitas por um homicida serial que usa seus truques para causar ilusões em massa.

Entretanto era preciso ater-se ao fato de que aquele cheiro entorpecia rapidamente e meus olhos necessitam uma pequena abertura para leves entendimentos geográficos. O eucalipto alvejante invadiu minhas narinas aos poucos, como sangue que escorre por pequenos cortes na junção entre a cutícula e os dedos. Menos pelo cheiro e mais pela ânsia que irritantemente custava a passar, as paredes alvas iniciavam uma dança tetraédrica. Não havia nuvens e o mundo todo resumia-se em encontrar erros da natureza através de duas janelas gigantescas abrindo-se de vez em quando no momento que o vento desenhava suavidades vagarosas a entrelaçarem-se com os fechos destrancados, construíam assim insinuações sonoras de desalento, onde as pausas em silêncio de movimentos eram partes essenciais da construção, cresciam como uma camada de fino ar que adentra por baixo da porta amadeirada entreaberta, o silêncio permeando os cantos do chão e subindo pelas paredes até encontrar as claves do ar que se movimentava através de artelhos precisos e vagarosos dos fechos, imediatamente podia-se sentir o crescer da música através das janelas. Precisa, vagarosa e visceral como um jazz de Bix Beiderbech.
Acordada enfim estava com a sensação de que os segundos não corriam mais rápidos que nada. O céu parecia de uma cidade qualquer e deixava revelar pedaços planos de nuvens achatadas em uma cor branca com as paredes do quarto. A cama férrica e os lençóis ligeiramente amarelados e cinza industrializavam-se, havia amarras de couro em cada lateral da cama e meus braços repousavam dentro delas, a porta entreaberta revelava a passagem de uma sombra disforme a cada cinco minutos. Horas cada vez mais intermináveis nunca chegavam a sequer começarem, e meus ouvidos há muito tempo já davam sinais concretos de que explodiriam, tive a sensação de que poderia deixar esse céu demolir-me por completo. Tentei então imaginar-me fora daquele quarto, caminhando por entre os carvalhos de minha rua em direção à garagem. Muito perto do meu café predileto, logo pela manhã. Passo por ele sem ao menos esboçar um bom dia. Sei que meu desjejum ficou de cartola fora da cabeça, pedindo conselhos aquele famoso chapeleiro de Alice. Mas era assim que eu andaria, despida de nutrientes andando por todos os locais que a imaginação realística pudesse fornecer ao meu instinto de arrancar aquelas amarras e terminar o que deveria ser completo, um esforço sobre humano em tentar sobreviver pelo menos durante esse dia. Só por hoje eu amaria a minha vontade em não ver meu corpo sangrar até o fim, mas só por hoje. Era preciso concentrar-se, era preciso continuar a andar por entre as ruas irreais dessa manhã. Não era misericórdia, muito menos uma tentativa de catedrática erudição ou redenção com data de validade expirando em fungos acéfalos. Era apenas um grito, a forma mais primal de ligação entre os seres humanos, o mais possível pedaço de estrutura da alma. Um não calar, vomitar ou esparramar pelas bordas da vida uma ejaculação quente e modorrenta. Um berro gutural nascido em ressurreição, como se possível fosse despedaçar a pele e unir suas células em uma onda reflexiva e refratária de som, seria enfim nascer. O vento dentro do quarto me leva mais fundo ainda em minha hipnose e o caminho por onde passo abre-se mais. Olhava rostos nas ruas e sabia que muitos daqueles que me viam entendiam o que eu era pois seus reflexos ali jogados estavam. E quando eu olhava bem dentro de seus olhos me diziam que éramos iguais. Um sinônimo humano que deambula pelas lateralidades do mundo, uma fenocópia desigual. Porém universalidade jamais será o que todos querem, pois em cada descobrir de minha face, as pessoas retiravam seus olhares e isolavam meu sorriso, como se escrava fosse minha alma e essa denegação fosse uma chibata. Sentia dentro de mim cada empalamento de ódio por mostrar que era eu um pedaço de todos e que eles eram um pedaço de mim. Nossas vidas amalgamadas segundo a segundo por algo que jamais veremos. Enquanto andava entendi os porquês de tudo aquilo.
Percebi que todas as dores, cortes, agulhas, tesouras, pós-mágicos, dedais, marionetes, colunas sociais, igrejas matrizes, chiquinhos padres, tatuagens, amigos mortos, amores postos, narizes sangrando, veias pulsando, dores abertas pelo tempo, pulmões em colapso, não eram nada e jamais significariam alguma coisa, pois quando descobrem-se iguais ao outro dentro da alma, as pessoas tendem ao homicídio coletivo e higienista. Rezam de joelhos em suas igrejas pedindo um mundo mais unido, porém ao ver meu rosto igual ao deles, sentem asco. Entendi que nada daquilo que experimentei e o que tornei-me seria de valia aos olhos terceiros, como sempre. O cotidiano da aceitação sempre foi imperfeito e assim as pessoas conseguem um equilíbrio com suas próprias neuroses, impedindo-as de viver da maneira que realmente interessa, livres de amarras. Naquele quarto, embebida em sangue coagulado e janelas de jazz, finalmente entendi qual a realidade a ser vivida depois que abrisse novamente os olhos. Foda-se Andy, foda-se o cartesianismo. Sou livre como jamais serão nenhum destes que veem meu reflexo como sendo eles mesmos e vomitam distorções normativas. Amarente sim e para sempre. Amar rente.

Não saberia dizer se foi realmente no dia de minha quase morte que tornei-me eu, ou isso foi um aglomerado de dias que passaram sem perceber que estava nascendo aos poucos, a única coisa que sabia com certeza, após abrir novamente meus olhos e sentir que o sangue enfim terminara sua trajetória descendente ao chão, era que seria necessário de minha parte colocar tudo isso em palavras, para que esse grito ao som de um Bix exteriorizado dentro de meu lisérgico cérebro fosse ouvido nem que fosse apenas por esse novo eu que pariu aos berros dentro de alvas paredes e ventos leves.