29 de janeiro de 2014

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A primeira coisa que ele inventou, contou-me isso depois de algum tempo que nos conhecemos, foi o cigarro. Muito antes de colocar sobre a terra a primeira versão de pornografia com objetivos masturbatórios, onde um casal transava inadvertidamente por entre as matas, rios e lagos em sua maioria quase todos desabitados quando não com alguns répteis apenas. No tempo onde o par romântico robótico, um homem e a mulher de sua costela, costumavam enveredar em atos sexuais quilométricos, ele por vezes voltava ao velho vício de gênese prima, envolvendo o bastonete de nicotina por entre seus longos dedos, girando-o quase sempre em sentido anti-horário, equilibrando suas habilidades de maneira singular. Conseguia manter esse foco ao fio de longas horas ou submerso nos estrondos proferidos pelos gemidos da mulher e o do homem, que nada mais sabiam sobre o lugar onde estavam, a não ser que as sensações que retesavam seus corpos os levavam sempre para o mesmo lugar hermeticamente fechado de ações únicas. Ele a tocava, ela o tocava, ele a sentia em bicos, lábios grandes e pequenos, ela o sentia em escrotos e glande, ele a penetrava, ela o penetrava, afinal, os longos dedos dela eram uma cópia fiel dos mesmos trapezistas de cigarro que seu criador possuía, e assim pela sua lógica mitótica de criação, seria capaz de sentir o penetrar de um homem e o ser penetrado por uma mulher, mesmo que fossem apenas as falanges dela. Ele me contou que logo no começo das relações sexuais dos dois, muitas vezes passava horas e horas fumando e sentindo o gosto de seus dedos, desenhando em sua boca a sua própria boca, como uma oração dita inúmeras vezes, uma reza destilada em fumaça nos cantos dos lábios sempre no sentido anti-horário, a saliva era morna e cheirava ao âmbar das árvores como um melaço resfriando-se, as unhas entumecidas roçando a língua dele deixavam notas das folhas e orvalho seco, sentia a sujeira misturando-se à saliva e os gemidos do homem cada vez mais fortes enquanto a mulher o recebia em sua boca com seus dedos em riste, o cigarro pela metade, a nicotina que invadia suas sinapses cada vez mais profundas, o feminino e o masculino dentro do seu corpo e indivisíveis, a pele dos nós nos dedos da mulher era suave e as pequenas rugas davam uma sensação de pressão, que somada ao trago do cigarro revelava uma nuance que ele descobrira naquele instante, algo jamais pensando ou produzido por ele desde os tempos da primeira cria. No sexto dia ele iniciou a criação da beleza através de todas aquelas sensações em helicoidais formas de fumaça e urros, seus dois escravos dentro daquela Terra, suas duas míseras escarradas inoculadas e confeccionadas como seres humanos dissolvendo-se em suores, intocados por tecidos ou folhas a recobrir seus corpos, soltos no ar como dois homicidas trapezistas apenas capazes de sentir o acelerar do sangue na direção de seus sexos quando no limite. A mulher redesenhava a anatomia do homem com seus dedos, a maneira em seda como percorria as arestas quase fechadas em vácuo do interior dele eram tão sublimes que ele, enquanto assistia e sentia, quase terminou o cigarro em uma só tragada. Mas esperou, segurou com seus dedos o final, enforcando o tecido mais escuro e sentindo o entumecer frenético dos trovões, era preciso esperar, esperar pela mulher desejar a língua com saliva ácida, deixar escorrer por cima do homem, recobrindo toda a extensão dele, o cigarro marcava a boca do criador, seco, despregava alguns pedaços da pele de sua boca e estampava seu sangue na nicotina, a mulher em alquimia aperta a criatura masculina mais forte e suas falanges já não esperam mais, desdobram-se em clavas dentro do homem, o homem já não mais existe, dissolve-se no submundo da fisiologia, a mulher vulcaniza-o, e enfim ele já não é mais nada, não precisa ser mais nada, ela sente sua mão esquerda abrir-se pela pressão causada durante o rodopiar final dele, o criador prepara-se, a mulher enovela sua língua e a falange ereta parte ao equinócio, o apocalipse, o gênesis e o meio, tudo em química na língua da mulher, que só após esse dia ganharia um nome. O homem acabaria recebendo uma denominação apenas por questão de ordem, não por gosto de seu criador.

Não existiu depois desse episódio mais alguma intenção dele em estabelecer preceitos ou castas nas gerações futuras, porém o criador já sabia que por longos anos algum tipo de cocaína ideológica seria necessária para que certos escarros humanos possam viver sem saber de tudo isso que ele vivenciara, mas Andy não está preocupado com isso agora, ele apenas sente suas criações, os pedaços delirantes de sua lisergia em movimento, engole o último pedaço de nicotina.

Ele gostava de me contar isso sempre nas primeiras vezes que nos encontramos, talvez por achar que fosse me sentir chocada com alguma coisa, porém sempre disse a ele que isso era apenas exibicionismo e que se fosse contar algo que ele me contasse como inventou primeiro o câncer e só depois o amor. Andy nunca gostou de ser interrompido, muito menos chamado de imperfeito, também nunca fora motivo de alguma alegria por parte de sua alma (se é que a possuía) questionamentos quanto sua postura diante da ordem como todas as coisas foram criadas ou até dos motivos - estes muito mais torpes do que qualquer ser humano pudesse imaginar -. Contentava-se em dar esparsas explicações e como todo menino com uma eterna dose de egocentrismo, inúmeras vezes durante nossas conversas ele simplesmente dizia que as coisas eram assim, pois elas deveriam ser assim de acordo com a sua vontade, e, sempre ao dizer isso usava uma de suas mais irônicas frases:
“Está na Bíblia lembra?”.

O sorriso em seus olhos quando ele dizia isso era a única coisa que me levava mais próxima a ele. O cinismo daquele que as pessoas chamavam de Deus era a ímpar característica que tínhamos em comum, talvez até um pouco do sadismo ou da genética suicida, porém era só. Isso avivava minha memória durante o tempo deitada no quarto do hospital, pois ficava a lembrar de quando comecei a entender quem era realmente esse ser que as pessoas temiam e que para mim não passava de um drogado sadomasoquista que sempre aparecia em minha frente usando um boné sujo de caminhoneiro e barba por fazer de duas semanas, sempre fumando um maldito cigarro Marlboro Lights, o que me irritava mais ainda, afinal de contas como o maldito ser onipresente e que nunca contrairia câncer de pulmão, tinha a capacidade de fumar algo que parecia menos um cigarro e mais uma latrina.