4 de novembro de 2013

2 Amarente...

O dia em que resolvi escrever sobre minha vida não haviam nuvens e tudo resumia-se ao contrariar o erros da naureza. Acordada com a sensação de que os minutos não corriam mais rápidos que nada. Naquela quarta acordei no automático. As roupas não foram escolhidas, em inércia colocadas e nem ao menos fora eu a vestir-me. O céu de uma cidade qualquer, que hoje eu não sei se lembro, um beijo cortou minha alma e me disse: "Hoje não é dia de nada, hoje é dia de sobreviver". Revoltei-me com a ordem. Como assim sobreviver apenas, depois de tudo que passei para chegar até aqui, eu queria mais. Queria sempre mais de mim e de todos. Queria todos acordados e dançando como Björk, todas as minhas veias gozando pelo quente afago das nuvens. Queria elas explodindo pela ação de qualquer agulha. Eu não poderia deixar esse céu cinza demolir-me por completo. A possibilidade em voltar ao início, dentro daquele misógino útero de repressão em lava não era um opção atraente. Seria muito mais útil o suicídio.
Entretanto, sai no automático de casa. Caminhando por entre os carvalhos e roseiras em minha rua em direção à garagem. Muito perto do meu café predileto, logo pela manhã. Passei por ele sem ao menos esboçar um bom dia. Sei que meu desjejum ficou de cartola fora da cabeça, pedindo conselhos aquele famoso chapeleiro de Alice. Mas era assim que eu queria, despida de nutrientes. Nessa manhã percebi a aproximação de minha história com vontade em deixar neste mundo meu grito. Não era misericórdia, muito menos uma tentativa de catedrática erudição ou redenção com data de validade expirando em fungos acéfalos. Porque um grito é a forma mais primal de ligação entre os seres humanos. Apenas um grito, o mais possível pedaço de estrutura da alma. Um não calar, vomitar ou esparramar pelas bordas da vida uma ejaculação quente e modorrenta. Um berro gutural nascido em ressurreição, como se possível fosse despedaçar a pela e unir suas células em uma onda reflexiva e refratária de som. Isso seria enfim nascer e nunca mais voltar. Isso seria enfim a morte desses artefatos de tortura que prenderam durante anos meu corpo em desafinação.
Olhava os rostos nas ruas e sabia que muitos daqueles que me viam, entendiam o que eu era. Porque os reflexos de seus espelhos, ali jogados estavam. Nas suas caras, em pleno dia. E quando eu olhava bem dentro de seus olhos eles me diziam que éramos iguais. Um sinônimo humano que deambula pelas lateralidades do mundo. Fenocópia desigual do seu terceiro corpo. Então eu sabia que minha história era a mais comum, mesmo assim universal. Porém universalidade jamais será o que todos querem, pois em cada descobrir-se em minha face, as pessoas retiravam seus olhares e isolavam meu sorriso em uma cela de segregação invisível. Como se escrava fosse minha alma e essa denegação fosse uma chibata. Sentia dentro de mim cada empalamento de ódio por mostrar que era eu um pedaço de todos e que eles eram um pedaço de mim. Nossas vidas amalgamadas segundo a segundo por algo que jamais veremos. Naquela quarta morri novamente, violentamente e pausadamente. Foi o dia onde entendi os porquês em tudo aquilo. Percebi que todas as dores, cortes, agulhas, tesouras, pós mágicos, dedais, marionetes, colunas sociais, igrejas matrizes, chiquinhos padres, tatuagens, amigos mortos, amores postos, narizes sangrando, veias pulsando, dores abertas pelo tempo, pulmões em colapso, não eram nada e jamais significariam alguma coisa, pois quando descobrem-se iguais ao outro dentro da alma, as pessoas tendem ao homicídio coletivo e higienista. Rezam de joelhos em suas igrejas pedindo um mundo mais unido, porém ao ver meu rosto igual ao deles, sentem asco.
Nessa quarta que entendi, nada daquilo que experimentei e o que tornei-me seria de valia aos olhos terceiros, como sempre. O cotidiano da aceitação sempre foi imperfeito e assim as pessoas conseguem um equilíbrio com suas próprias neuroses, impedindo-as de viver da maneira que realmente interessa. Livres de amarras. Nessa quarta eu já sei a resposta. Foda-se Andy, foda-se o cartesianismo. Sou livre como nunca jamais serão nenhum destes que veem meu reflexo com sendo eles mesmos e vomitam distorções normativas.
Amarente sim e para sempre. Amar rente...

Não saberia dizer quando tornei-me eu. Mas sabia dizer quando sentira o amor pela primeira vez. Não aquilo com o vizinho de cerca, que se revelou um mero coadjuvante. Mas sim aquele que devasta. Tira sua cabeça de qualquer atmosfera elevada em dez a vinte três moléculas, jamais apagado das cadeiras escolares, as mesmas que me jogavam na infância. Sempre lembrei a primeira vez em que descobri o amor Scarlett O’Hara. Lisergia de perder-se dentro de um ser completamente novo, sentir-se inteira, pulsar a vida de dentro de um corpo cansado da guerra. Muito mais que sentir na alma, amar era rente. Mas não foi sempre assim. Descobri isto não da melhor maneira, nem da mais rápida. Porque simplesmente não sabia o que era, nunca sentira de verdade, era apenas esboço seco.

Folhas amontoando-se na varanda. Uma noção de amor não passava do seguir platonicamente as figuras que mais chamavam a atenção, naquele cinza quarteirão onde tinha minha morada secreta. O casarão quase repousando na esquina da rua, onde minha paciência inesgotável jazia lenta através do corpo roto. As paredes perdendo a tinta por entre o concreto em cores arenosas e vermelhas da poeira no outono. O eco dos ventos no assoalho onde me deitava, enterrada os fones de ouvido repassando o dedos em cada célula de areia a fundir-se com minha alma. Aquela casa foi meu refúgio durante anos, enquanto deteriorava-se a de meus pais. Descoberta nas minhas fugas de socorro, era minha alva mater de redenção. O lugar onde eu podia viver tudo aquilo que sonhara antes mesmo de acontecer, as danças mais lindas e canções mais apaixonadas eram apenas minhas. A menina escondida por entre o rosto marcado de cicatrizes e escaras psicológicas dentro daquelas paredes envelhecidas tornava-se ímpar. Amada como o corte mais profundo da navalha na carne, aquela casa sempre foi o local onde conhecia todos aqueles por quem me apaixonava e jamais conseguiria fisicamente chegar perto. Conversava com todos eles, sozinha dentro de uma casa abandonada. Não sabia o gosto dos lábios de meus amantes, mas já vivera todas as cenas dentro em meus cobertores. Em noites onde a lua e o frio faziam da sacada floresta. Era assim sozinha que imaginava. Não sabia se conseguiria amar alguém, afinal de contas sempre fui ensinada que não deveria. Programada para ser um monstro, anormal. Não passava de sombra por entre os mundos. Mas dentro de mim sabia que não, mas não sabia ainda. Imaginava que tudo o que aconteceu iria acontecer, porém jamais imaginei que tudo começaria dentro do meu território particular e escondido. Uma mudança que iria durar anos teve seu início no tempo onde eu mais tentava dizimar meu corpo por entre as madeiras daquela velha casa abandonada. Não são assim que as verdadeiras mudanças devem ser?

Por entre abertas tardes, quando não me escondia, percebi por entre a sacada de sonhos, que alguém pelas beiradas espreitava sem querer. Passando pela calçada nem a notou instantaneamente. Passara apenas olhando quanto o prédio vizinho crescera nesses últimos meses. Concreto e madeira de lei, trazida ilegalmente. Tinha pelo menos alguns grandes andares completamente prontos. Homens perambulando pelos parapeitos herméticos e abertos em seus capacetes. Ele adorava pensar que os operários nasciam com asas embutidas, caso o acaso trouxesse uma queda. Pensava como seria morar naquele prédio. Sobre a piscina e seus círculos químicos denunciantes, a quadra aonde poderia jogar aquele gol a gol com seu vizinho chapado. Pensava nos churrascos na sacada, suspirava. Depois abria um sorriso e sabia, jamais.

"Essa vida cartesiana não me pega".

Assim continuou sem perceber que estava sendo observado havia algumas semanas. Uma pequena flor de lótus balançava por entre a sacada. Não havia escapatória. Sempre soube que seu destino era ele e mais nenhum seria possível. O choro do conformismo latia como cão vadio por entre as pernas. Eu era uma menina que crescia dentro de uma armadura. Não ganhara nada além de dor, mas enfim era a minha vida.